Golconde. René Magritte, 1953. |
Yure
Cézar de Moura Almeida
(Filósofo)
Resumo.
As
Moscas não era apenas uma peça qualquer; ela levava o germe da
dúvida camuflado em suas páginas. Para passar pela dura censura de
seu tempo, Sartre camuflou suas idéias e espírito de vingança sob
metáforas. As Moscas, além de peça teatral, pode ser considerada
um trabalho filosófico que aborda temas cruciais do Existencialismo
sartriano: a má-fé, a liberdade, a vingança e a crítica contra a
idéia de destino. As Moscas trata de um jovem chamado Orestes que
pretende vingar seu pai que foi assassinado por Clitemnestra.
Contudo, este artigo não visa tratar da obra como um todo, mas de
uma personagem em especial: Electra. Electra é uma moça, filha de
Clitemnestra, irmã de Orestes, possessa por sentimentos de vaidade e
mergulhada em um denso desejo de vingança. Contudo, Electra não é
capaz de agir em prol de seu desejo. Analisando as falas de Electra
no texto, direi quais são seus desejos, por que ela odeia seus pais,
o que a impede de se vingar e por que ela às vezes parece tão
apática.
Electra em As Moscas.
Electra
demonstra ódio por Júpiter: ela pratica desrespeitos ao deus, mas
só enquanto ninguém está olhando, ou quando ela acha que ninguém
está olhando. Diz que odeia sua cidade e que se sente bem em ver
coisas vindas de fora de Argos.
Por
que Electra não pratica desrespeitos a Júpiter em público? Ela tem
medo. Ela tem medo de atrair a atenção da sociedade de Argos ou,
mais especificamente, das autoridades. Ela tem um ódio calado.
Também Electra não tem intenção de fugir; ela não quer correr o
risco de caminhar solitária para fora da cidade da qual nunca saiu.
Mas vontade não falta, ela não quer ficar em Argos pelo resto de
sua vida. À primeira vista, Electra parece estar apenas “adiando”
sua fuga, com medo das conseqüências. Esse “adiamento” reforça
seu desejo de esperar por Orestes que, por sua vez, reforça sua
apatia. São duas “desculpas” para esperar. Electra manifesta
cedo a má-fé. Ela é tratada como escrava por seus próprios pais,
mas o medo das conseqüências da fuga é suficiente para mantê-la
onde ela está, com o que já tem, ao invés de largar o palácio dos
pais, a comida por eles provida e a segurança de ser da família
real em prol de uma fuga que ela não sabe onde vai dar. Entre o
risco e a situação miserável de escrava, ela prefere ficar e
esperar por alguém ou alguma coisa.
Em
certo momento do livro, no Segundo Ato, ocorre uma cerimônia de
louvor aos mortos. Na “festa”, Electra surpreende a todos ao
aparecer vestida de branco. Egisto, o sacerdote, protesta, dizendo
que ela deveria estar de luto. Por causa da segurança que Filebo, na
verdade Orestes, que apareceu para vingar a morte de seu pai, deu a
ela, Electra ganha coragem para desafiar Egisto e Clitemnestra, sua
mãe. Ela diz que não tem medo dos mortos.
É
nesse momento que Electra mostra-se totalmente sem culpa pelo seu
passado, apontando a culpa dos outros e mostrando-os que a culpa é
algo pessoal e superável, não algo eterno e público tomando assim
seu primeiro posicionamento contra os costumes vigentes.
Electra
pergunta se é problema que ela esteja feliz. Ela desmascara
publicamente a verdadeira organização da família real, dizendo que
é tratada como escrava por Clitemnestra.
Electra
provoca a população dizendo que existem cidades felizes na Grécia,
cidades em que as pessoas vivem sem culpa, cidades em que as pessoas
não se torturam com os pecados do passado. Parte da população a
apoia, mas a maioria ainda peda que ela cale a boca. Ela continua,
gritando ao povo que eles parecem ter esquecido como é um momento
alegre; a população acorda triste e pesarosa apenas para dormir no
fim do dia na mesma situação em que acordou. Mas Electra diz-se
feliz e nada acontece com ela. Ela prova que não há mal em esquecer
a culpa e permitir-se agir normalmente. A população precisa de mais
uma prova. Electra ora aos mortos pedindo que, se ela estiver fazendo
algo errado, que deixem-na saber com um sinal. Ela dança e os sons
vindos da caverna dos mortos silenciam. A população acredita e
aponta para Egisto, chamando-o de mentiroso.
A Priestess. John William Godward, 1893. |
Júpiter,
contudo, não poderia permitir tal ação. Ele faz a pedra que tampa
a caverna rolar. A população se assusta e Electra pára de dançar.
Ela diz que, na próxima vez, conseguirá. Sua atitude profana havia
falhado.
Depois
que seu plano fracassou de operar uma revolução em Argos, Electra
passa a culpar Filebo e diz que não havia percebido as vantagens de
sua vida medíocre. Ela muda de idéia e diz que agora quer ficar na
sua situação atual, por causa da frustração e do risco pelos
quais passou mais cedo. Mais uma vez, ela põe-se a esperar.
Noutra
cena, após Filebo confessar que é Orestes e falar sobre seu plano
de matar Clitemnestra e Egisto, Orestes mata o sacerdote enquanto
Electra apenas assiste. Contudo, a jovem não estava preparada para o
que ia ver. Ela não suportou a imagem de um homem a morrer. Electra
fica aflita após o choque. Ela ouve os passos de Orestes, olha o
cadáver de Egisto e descobre que estava incerta do que queria.
Clitemnestra começa a gritar. Electra tenta ignorar seu remorso e
sua indecisão e finge-se feliz, uma nova demonstração de má-fé.
Electra se pergunta se a liberdade pode apagar o passado. Ela
sente-se culpada, quer escapar do fato de ter sido cúmplice por
omissão no assassinato da própria mãe. Mas será que realmente se
pode ser cúmplice por omissão? Ou será que ela secretamente queria
que aquilo acontecesse e agora ela se sente culpada por ter desejado?
Electra passa a culpar Orestes pela morte da mãe, passa a negar seu
ódio passado, tenta jogar a responsabilidade para Orestes que
aparenta não ter qualquer remorso. Orestes lembrou Electra de que
ela queria isso, mas Electra ignora, chamando-o de carrasco da
própria mãe.
Electra
começa a acreditar em Júpiter e tem um breve momento de adoração
por ele. Electra o defende, imersa na esperança de sair sã e salva
daquele lugar, esquecendo-se do quanto Júpiter lhe fez mal no
passado. Ela estava desesperada, com medo e entrega a
responsabilidade de salvar sua vida a um falso deus. Ela estava
pressionada por todos os lados: pela sua culpa, pelas erínias
(deusas do remorso), por Júpiter, por Orestes e pela população de
Argos que poderia matá-la assim que soubesse do assassinato da
rainha e do sacerdote. Electra foge, dizendo que não tem mais nada.
Ela
se mostra então uma metáfora para a pessoa que não sabe como
administrar seu desejo de liberdade, desejando algo sem estar pronta
para as consequências. Suas múltiplas atitudes de má-fé
sartriana, esses atos de culpar outros por seus atos e de mentir para
si mesma, são atos normais de alguém que não quer enfrentar as
consequências de uma escolha. A liberdade de modo algum é
inconsequente, todos os nossos atos geram consequências. O
existencialismo diz que devemos assumi-las, porque não podemos
escapar delas. Então, tudo o que desejamos e tudo o que fazemos deve
ser aceito depois que escolhemos efetivar nossa vontade e assumir as
consequências de nossos atos não deve ser razão de culpa, na
medida em que soubemos escolher.
Conclusão.
Após
a análise e a apresentação da principais falas de Electra na peça,
pode-se dizer que Electra enfrenta alguns conceitos sartrianos:
liberdade, má-fé e culpa.
Electra
não sabe o que é ser livre. Na mente dela, talvez liberdade seja
agir como a vontade pede, sem preocupações, sem culpa. Contudo,
liberdade é o agir após reflexão sobre as consequências. Se ela
teme as conseqüências, ela não pode ser livre. Note também que
ela pergunta a Orestes o que é liberdade e há um diálogo sobre
liberdade no texto. Electra não sabe o que é liberdade e nunca
poderá ser livre se não aceitar as conseqüências de seus atos.
Quando a pessoa teme as conseqüências de uma escolha, fecha seus
olhos para uma possibilidade, limitando seu leque de escolhas, sua
liberdade, seus campos de ação.
Ela
também tem momentos apáticos. Tem medo de lutar contra o governo de
sua mãe, por isso ela prefere esperar por Orestes. Contudo, não há
certeza se Orestes virá. A esperança fabricada e a ilusão de que
ela não pode lutar sustentam e racionalizam seu medo, deculpas para
esperar, mentiras para si própria, má-fé.
Por
causa disso, As Moscas se mostra bastante atual, pois tudo isso
descreve comportamentos que existem hoje na religião, na política e
nas relações sociais. Embora seja natural que queiramos minimizar
as consequências ruins de nossos atos, qualquer consequência ruim
deve ser assumida com coragem e maturidade. Só se pode ser livre
quando assumimos responsabilidade pelos nossos atos. De outra forma,
somos escravos da mentira.
Referência.
Sartre, Jean-Paul: As Moscas. Tradução de Caio Liudvik. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
Para
citar este documento (ABNT/NBR 6023: 2002):
Almeida,
Yure Cézar de Moura: As
Moscas – uma perspectiva de luta libertária.
Praxis Jurídica, Ano III, N.º 03, 09.05.2016 (ISSN 2359-3059).
Disponível em: <http://praxis-juridica.blogspot.com.br/2016/05/as-moscas-uma-perspectiva-de-luta.html>. Acesso em: .
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