domingo, 15 de maio de 2016

As Moscas – uma perspectiva de luta libertária

Golconde. René Magritte, 1953.

Yure Cézar de Moura Almeida
(Filósofo)

Resumo.

As Moscas não era apenas uma peça qualquer; ela levava o germe da dúvida camuflado em suas páginas. Para passar pela dura censura de seu tempo, Sartre camuflou suas idéias e espírito de vingança sob metáforas. As Moscas, além de peça teatral, pode ser considerada um trabalho filosófico que aborda temas cruciais do Existencialismo sartriano: a má-fé, a liberdade, a vingança e a crítica contra a idéia de destino. As Moscas trata de um jovem chamado Orestes que pretende vingar seu pai que foi assassinado por Clitemnestra. Contudo, este artigo não visa tratar da obra como um todo, mas de uma personagem em especial: Electra. Electra é uma moça, filha de Clitemnestra, irmã de Orestes, possessa por sentimentos de vaidade e mergulhada em um denso desejo de vingança. Contudo, Electra não é capaz de agir em prol de seu desejo. Analisando as falas de Electra no texto, direi quais são seus desejos, por que ela odeia seus pais, o que a impede de se vingar e por que ela às vezes parece tão apática.

Electra em As Moscas.

Electra demonstra ódio por Júpiter: ela pratica desrespeitos ao deus, mas só enquanto ninguém está olhando, ou quando ela acha que ninguém está olhando. Diz que odeia sua cidade e que se sente bem em ver coisas vindas de fora de Argos.
Por que Electra não pratica desrespeitos a Júpiter em público? Ela tem medo. Ela tem medo de atrair a atenção da sociedade de Argos ou, mais especificamente, das autoridades. Ela tem um ódio calado. Também Electra não tem intenção de fugir; ela não quer correr o risco de caminhar solitária para fora da cidade da qual nunca saiu. Mas vontade não falta, ela não quer ficar em Argos pelo resto de sua vida. À primeira vista, Electra parece estar apenas “adiando” sua fuga, com medo das conseqüências. Esse “adiamento” reforça seu desejo de esperar por Orestes que, por sua vez, reforça sua apatia. São duas “desculpas” para esperar. Electra manifesta cedo a má-fé. Ela é tratada como escrava por seus próprios pais, mas o medo das conseqüências da fuga é suficiente para mantê-la onde ela está, com o que já tem, ao invés de largar o palácio dos pais, a comida por eles provida e a segurança de ser da família real em prol de uma fuga que ela não sabe onde vai dar. Entre o risco e a situação miserável de escrava, ela prefere ficar e esperar por alguém ou alguma coisa.
Em certo momento do livro, no Segundo Ato, ocorre uma cerimônia de louvor aos mortos. Na “festa”, Electra surpreende a todos ao aparecer vestida de branco. Egisto, o sacerdote, protesta, dizendo que ela deveria estar de luto. Por causa da segurança que Filebo, na verdade Orestes, que apareceu para vingar a morte de seu pai, deu a ela, Electra ganha coragem para desafiar Egisto e Clitemnestra, sua mãe. Ela diz que não tem medo dos mortos.
É nesse momento que Electra mostra-se totalmente sem culpa pelo seu passado, apontando a culpa dos outros e mostrando-os que a culpa é algo pessoal e superável, não algo eterno e público tomando assim seu primeiro posicionamento contra os costumes vigentes.
Electra pergunta se é problema que ela esteja feliz. Ela desmascara publicamente a verdadeira organização da família real, dizendo que é tratada como escrava por Clitemnestra.
Electra provoca a população dizendo que existem cidades felizes na Grécia, cidades em que as pessoas vivem sem culpa, cidades em que as pessoas não se torturam com os pecados do passado. Parte da população a apoia, mas a maioria ainda peda que ela cale a boca. Ela continua, gritando ao povo que eles parecem ter esquecido como é um momento alegre; a população acorda triste e pesarosa apenas para dormir no fim do dia na mesma situação em que acordou. Mas Electra diz-se feliz e nada acontece com ela. Ela prova que não há mal em esquecer a culpa e permitir-se agir normalmente. A população precisa de mais uma prova. Electra ora aos mortos pedindo que, se ela estiver fazendo algo errado, que deixem-na saber com um sinal. Ela dança e os sons vindos da caverna dos mortos silenciam. A população acredita e aponta para Egisto, chamando-o de mentiroso.
A Priestess. John William Godward, 1893.
Júpiter, contudo, não poderia permitir tal ação. Ele faz a pedra que tampa a caverna rolar. A população se assusta e Electra pára de dançar. Ela diz que, na próxima vez, conseguirá. Sua atitude profana havia falhado.
Depois que seu plano fracassou de operar uma revolução em Argos, Electra passa a culpar Filebo e diz que não havia percebido as vantagens de sua vida medíocre. Ela muda de idéia e diz que agora quer ficar na sua situação atual, por causa da frustração e do risco pelos quais passou mais cedo. Mais uma vez, ela põe-se a esperar.
Noutra cena, após Filebo confessar que é Orestes e falar sobre seu plano de matar Clitemnestra e Egisto, Orestes mata o sacerdote enquanto Electra apenas assiste. Contudo, a jovem não estava preparada para o que ia ver. Ela não suportou a imagem de um homem a morrer. Electra fica aflita após o choque. Ela ouve os passos de Orestes, olha o cadáver de Egisto e descobre que estava incerta do que queria. Clitemnestra começa a gritar. Electra tenta ignorar seu remorso e sua indecisão e finge-se feliz, uma nova demonstração de má-fé. Electra se pergunta se a liberdade pode apagar o passado. Ela sente-se culpada, quer escapar do fato de ter sido cúmplice por omissão no assassinato da própria mãe. Mas será que realmente se pode ser cúmplice por omissão? Ou será que ela secretamente queria que aquilo acontecesse e agora ela se sente culpada por ter desejado? Electra passa a culpar Orestes pela morte da mãe, passa a negar seu ódio passado, tenta jogar a responsabilidade para Orestes que aparenta não ter qualquer remorso. Orestes lembrou Electra de que ela queria isso, mas Electra ignora, chamando-o de carrasco da própria mãe.
Electra começa a acreditar em Júpiter e tem um breve momento de adoração por ele. Electra o defende, imersa na esperança de sair sã e salva daquele lugar, esquecendo-se do quanto Júpiter lhe fez mal no passado. Ela estava desesperada, com medo e entrega a responsabilidade de salvar sua vida a um falso deus. Ela estava pressionada por todos os lados: pela sua culpa, pelas erínias (deusas do remorso), por Júpiter, por Orestes e pela população de Argos que poderia matá-la assim que soubesse do assassinato da rainha e do sacerdote. Electra foge, dizendo que não tem mais nada.
Ela se mostra então uma metáfora para a pessoa que não sabe como administrar seu desejo de liberdade, desejando algo sem estar pronta para as consequências. Suas múltiplas atitudes de má-fé sartriana, esses atos de culpar outros por seus atos e de mentir para si mesma, são atos normais de alguém que não quer enfrentar as consequências de uma escolha. A liberdade de modo algum é inconsequente, todos os nossos atos geram consequências. O existencialismo diz que devemos assumi-las, porque não podemos escapar delas. Então, tudo o que desejamos e tudo o que fazemos deve ser aceito depois que escolhemos efetivar nossa vontade e assumir as consequências de nossos atos não deve ser razão de culpa, na medida em que soubemos escolher.

Conclusão.

Após a análise e a apresentação da principais falas de Electra na peça, pode-se dizer que Electra enfrenta alguns conceitos sartrianos: liberdade, má-fé e culpa.
Electra não sabe o que é ser livre. Na mente dela, talvez liberdade seja agir como a vontade pede, sem preocupações, sem culpa. Contudo, liberdade é o agir após reflexão sobre as consequências. Se ela teme as conseqüências, ela não pode ser livre. Note também que ela pergunta a Orestes o que é liberdade e há um diálogo sobre liberdade no texto. Electra não sabe o que é liberdade e nunca poderá ser livre se não aceitar as conseqüências de seus atos. Quando a pessoa teme as conseqüências de uma escolha, fecha seus olhos para uma possibilidade, limitando seu leque de escolhas, sua liberdade, seus campos de ação.
Ela também tem momentos apáticos. Tem medo de lutar contra o governo de sua mãe, por isso ela prefere esperar por Orestes. Contudo, não há certeza se Orestes virá. A esperança fabricada e a ilusão de que ela não pode lutar sustentam e racionalizam seu medo, deculpas para esperar, mentiras para si própria, má-fé.
Por causa disso, As Moscas se mostra bastante atual, pois tudo isso descreve comportamentos que existem hoje na religião, na política e nas relações sociais. Embora seja natural que queiramos minimizar as consequências ruins de nossos atos, qualquer consequência ruim deve ser assumida com coragem e maturidade. Só se pode ser livre quando assumimos responsabilidade pelos nossos atos. De outra forma, somos escravos da mentira.

Referência.


Sartre, Jean-Paul: As Moscas. Tradução de Caio Liudvik. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.




Para citar este documento (ABNT/NBR 6023: 2002):

Almeida, Yure Cézar de Moura: As Moscas – uma perspectiva de luta libertária. Praxis Jurídica, Ano III, N.º 03, 09.05.2016 (ISSN 2359-3059). Disponível em: <http://praxis-juridica.blogspot.com.br/2016/05/as-moscas-uma-perspectiva-de-luta.html>. Acesso em: .
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