sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Kant - Estado e Direito: Origem e Evolução

Cicero Denounces Catiline, by Cesare Maccari, 1889.
Fonte: Internet.

Noé Martins de Sousa
Natural de Pentecoste - CE, foi professor da Universidade Estadual do Ceará (por mais de 30 anos), publicou o livro “A Filosofia de Kant – A moral como fio condutor da articulação do sistema kantiano”(2012), pela Editora da Universidade Estadual do Ceará; editou dois artigos: “Estado e Partido no Marxismo Leninismo”, in “Filosofia 2” (Cadernos UECE, EdUECE, 1995); “Alcântara Nogueira” (sobre a original interpretação de Spinoza feita pelo pensador cearense), in Revista “CONATUS”, vol. 5, números 9 e 10, EdUECE, 2011.


1.0 - Preliminares
1.1 - Liberdade: único direito inato
1.2 - Ação pelo dever e ação conforme o dever
1.3 - Imperativo categórico e Imperativo hipotético
1.4 - O Direito subordinado à Moral
2.0 - Origem do Estado e do Direito
2.1 - O Contrato Social: estado de natureza e estado civil – direito provisório e direito peremptório
2.2 - Direito privado e direito público (em Kant – Direito natural e Direito civil)
2.3 - Evolução da Sociedade: Estado de Natureza, Sociedade Civil e Sociedade Ética
3.0 - A Sociedade Ética e o Fim-término do Homem
3.1 - A extinção do Estado e do Direito
3.2 - A abolição das religiões estatutárias ou positivas: existe apenas uma única religião, que é invisível
3.3 - O soberano bem final: o casamento da virtude com a felicidade
4.0 - A realização do homem
4.1-0 - A realização do homem no mundo terrenal (Marx etc)
4.1.1 - A realização plena do homem no mundo transcendente (Kant etc)
4 - Conclusão
5 - Bibliografia

Immanuel Kant.
Fonte: Internet.


  1. - PRELIMINARES
As principais obras de Kant, para quem deseja iniciar um estudo sobre sua filosofia do direito, são: “Crítica da razão prática” (Kritik der praktischen Vernunft-KrV); “Fundamentação da metafísica dos costumes” (Grundlegung zur Mataphysik der Sitten - GMS); “Metafísica dos costumes” (Die Mataphysik der Sitten), especialmente a primeira parte que fundamenta o direito; “À paz perpétua, um projeto filosófico” (Zum Ewigen Frieden, ein philosophischer Entwurf); “A religião dentro dos limites da simples razão” (Die Religion innerhalb der blossen Vernunft), ou seja, dentro da razão natural, sem apelar para a revelação dogmática; “Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita” (Idee zu einer Allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht); “Resposta à pergunta: que é o Iluminismo?” (Beantwortung der Frage: Was ist Aufkärung?)1; “O conflito das faculdades” (Der Streit der Fakuläten), especialmente o artigo “Questão renovada: estará o gênero humano em constante progresso para o melhor?”. Essas são as obras essenciais, mas existem ainda vários artigos de Kant relacionados com o assunto, geralmente publicados em coletânea sob o título de “Filosofia da história”, que indicaremos na Bibliografia, no final deste escrito.


1.1 - LIBERDADE: ÚNICO DIREITO INATO
Kant, na “Crítica da razão prática”, postula a existências de três ideias da razão prática como os três pilares de sua Metafísica: a Imortalidade da Alma, a Liberdade e a existência de Deus. Essas ideias não precisam ser provadas, já que são postulados, embora não sejam dogmas. Diz Kant, textualmente:


Estes postulados são os da imortalidade, da liberdade, considerada positivamente (como causalidade de um ser enquanto ele pertence ao mundo inteligível) e da existência de Deus. O primeiro decorre da condição praticamente necessária da conformidade da duração com a plenitude do cumprimento da lei moral; o segundo promana da suposição necessária da independência relativamente ao mundo sensível e da faculdade da determinação da sua vontade segundo a lei de um mundo inteligível, isto é da liberdade; o terceiro, da necessidade da condição requerida para um tal mundo inteligível ser o soberano bem, mediante o pressuposto do bem supremo independente, isto é, da existência de Deus. (KpV, Seg. Liv., Dialética da razão pura prática, VI, Sobre o postulado da razão pura prática em geral, p. 151, ed. de 1999- Ver Bibliografia).


Para a finalidade desse escrito, vamo-nos ater ao postulado da liberdade. Esta, no Direito, é o único direito inato do homem, todos os demais direitos são adquiridos, inclusive o direito de posse ou propriedade. Ao contrário de Locke, que fundamenta a liberdade na propriedade, Kant diz que a liberdade é a própria condição da existência da propriedade. A sociedade civil tem por finalidade a garantia da liberdade e por ela se origina e perdura. Como bem o diz Joaquim Carlos Salgado:


A liberdade é o “alfa” e o “ômega” [princípio e fim] da filosofia do direito de Kant; o contrato social é obra da vontade dos homens e tem por finalidade: criar a ordem jurídica. A ordem jurídica, por sua vez, como fruto da vontade dos homens, tem uma finalidade: cuidar da sua liberdade. O contrato nasce da liberdade para a liberdade. Disso resulta a importante consequência: o direito não existe por si e para si, mas para a liberdade. Superar a ´liberdade selvagem´- ´o que não é renunciar à liberdade inata externa´- por uma liberdade dependente da lei decorre da própria vontade de quem a ela se submete é constituir um Estado, cuja finalidade é guardar o direito. (Salgado, p. 295, 1986).


E o cidadão, após o contrato social, não é apenas um súdito, mas também um colegislador da sociedade política, por seu direito de participação e representação. Portanto, ao obedecer à lei, obedece somente a si mesmo, após fazer o consenso com outras vontades.

By Salvador Dalí.
Fonte: Internet.



1.2–AÇÃO PELO DEVER E AÇÃO CONFORME O DEVER
Kant faz distinção entre ação moral e ação jurídica, isto é, ação pelo dever e ação conforme o dever. Uma ação é moral quando é praticada sem interesses ou medo de coação etc. É cumprir o dever por respeito à lei Moral (ver Imperativo Categórico). “Dever é a necessidade de ação por respeito à lei” [moral] (Kant, Fundamentação..., p. 31, 2001).
Quer dizer, os homens comumente agem conforme o dever, mas não pelo dever. Na vida prática é impossível detectar quem age pelo dever ou conforme o dever. Dois indivíduos, por exemplo, podem praticar o mesmo tipo de ação, mas um pode estar agindo por dever e o outro apenas conforme o dever. “Os homens conservam a sua vida conforme ao dever, sem dúvida, mas não por dever” (Kant, Fundamentação..., p. 27, 2001). Um comerciante pode vender uma mercadoria por um justo preço por dever moral e outro apenas conforme o dever. O que age moralmente pode dizer: “vendo pelo preço justo porque essa é minha obrigação moral”. Já o outro pode dizer para si mesmo: “vendo a mercadoria pelo mesmo preço do meu concorrente, não por dever moral, mas por receio de perder cliente e ficar arruinado” - isto é, age por interesse outro que não o dever moral (cf. p. 27, 2001, op. cit.). Quer dizer, o conceito de dever inclui em si o de boa vontade, boa intenção, e seu valor moral não depende de seu efeito ou propósito externo. É o que assevera Kant: “Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima2 que a determina; não depende portanto da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio do querer, segundo o qual a ação, abstraindo de todos os objetos da faculdade de desejar, foi praticada” (idem, p. 30).
Em suma, nesta distinção entre agir por dever e agir conforme o dever está a distinção entre lei moral e lei jurídica. A lei moral para ser cumprida não exige sanção ou coação, apenas a boa vontade. Já a lei jurídica exige sempre ou quase sempre a coação, para ser cumprida. Daí a exigência da criação do Estado, como garantia permanente do seu cumprimento.


    1. IMPERATIVO CATEGÓRICO E IMPERATIVO HIPOTÉTICO
Kant ainda faz distinção entre imperativo categórico e imperativo hipotético. “A representação de um princípio enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se imperativo (Kant, Fundamentação..., p. 48, 2001). E a seguir, completa: “No caso de a ação ser apenas boa3 como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme a razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categóri­co” (idem, p. 50).
O dever moral é um imperativo categórico. E sua lei moral suprema pode ser expressa da seguinte maneira: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (idem, p. 59)4. O homem que segue essa lei está dentro de sua autonomia.
Porém, no imperativo hipotético o homem deixa de ser autônomo (e, portanto, não moral) para ser guiado pelas inclinações, por objetos externos, ou seja, cai na heteronomia. O imperativo hipotético se expressaria assim: se agires de tal modo, receberás isto como recompensa; se agires de tal maneira, serás castigado etc.
Ora, tal imperativo deixa de ser moral, mas aplica-se perfeitamente ao mundo jurídico: se cumprires a lei civil não serás preso ou multado etc. Daí, mais uma vez, ser necessária a existência do Estado, para fazer o rebelde cumprir a lei civil.


    1. O DIREITO SUBORDINADO À MORAL
Poderíamos dizer que a moral nada tem a ver com o direito, o que seria um equívoco. O cumprimento da lei moral é espontâneo, fruto da boa vontade, mas o cumprimento da lei civil é feito por coação, exigindo o Estado como agente coator. Porém uma não seria incompatível com a outra, se os homens agissem racionalmen­te. Daí o motivo por que Kant deseja que a Humanidade deva caminhar para a cons­trução de uma sociedade ética, onde os homens agiriam eticamente, espontanea­mente, racionalmente, recebendo os mandamentos morais diretamente de Deus [o “Autor moral do mundo” – cf. Kant – Crítica da faculdade do juízo (KU), 87, p. 290, 1993]. Numa sociedade assim, o Direito e, portanto, o Estado, e também as reli­giões positivas, teriam sido todos abolidos.
Como a finalidade última da vida humana é o seu aperfeiçoamento mo­ral, na busca dessa sociedade ética, toda atividade humana seria subordinada a esse soberano bem, o fim último (Endzweck) do homem, ficando, pois, o direito subordi­nado à ética.
Kant, em seu escrito Sobre a discordância entre a moral e a política a pro­pósito da paz perpétua (geralmente publicada como Apêndice em À paz Perpetua) afirma textualmente a ética como subordinante da política e que as duas não podem ser incompatíveis entre si:
A moral é já por si mesma uma prática no sentido objetivo, enquanto totalidade de leis que ordenam incondicionalmente, de acordo com as quais devemos agir, sendo um evidente absurdo alguém, depois de ter admitido a autoridade deste conceito do dever, querer dizer que não se pode realizá-lo. Por que então este conceito cai por si mesmo (ultra posse nemo obligatur). Por conseguinte, não pode haver nenhum conflito entre política, enquanto doutrina do exercício do dever, e a moral como tal, mas teórica (portanto nenhum conflito entre a prática e a teoria). (in “Textos seletos”, p. 130, 1974).
E, mais adiante, para que não permaneça qualquer dúvida, Kant reafirma, categoricamente, como se estivesse se contrapondo a Maquiavel:
Embora a proposição: a honestidade é a melhor política, contenha uma teoria que, infelizmente, a prática com muita frequência contradiz, a proposição igualmente teórica: a honestidade é melhor do que qualquer política, está infinitamente acima de toda objeção, sendo mesmo a condição indispensável da política. O deus Término da moral não é inferior a Júpiter (o deus Término do poder). (ibidem)”5.
Depois desta citação, passamos a examinar a questão da origem do Estado e, portanto, do Direito, segundo Kant.


2.0– ORIGEM DO ESTADO E DO DIREITO
Kant aceita a teoria contratualista dos jusnaturalistas dos séculos XVII-XVIII. Mas para Kant esse contrato social é uma Ideia da Razão (uma Ideia Regulativa ou Orientativa) e não um fato empírico. Na Metafísica dos Costumes, afirma Kant:
O ato pelo qual o próprio povo se constitui em Estado, ou / melhor, a simples ideia deste ato, que só ela já permite conceber a sua legitimidade, é o contrato originário, segundo o qual todos (ommes et singuli) do povo deixam a liberdade externa para retomá-la novamente, já como membros de um corpo comum, ou seja, como membros do povo como Estado (universi). (Apud Bobbio, pp. 129-130, 1984).
Arch. B. D. Alexander, M. D. D., assim coloca a problemática do direito em Kant:
Como um ser autoconsciente e apesar disto um objeto particular no mundo, o problema da vida do homem é estabelecer a si próprio com relação a outros sujeitos, que, à semelhança dele, são também objetos particulares. A lei se torna, assim, uma determinação corretiva dos direitos e deveres, e o problema da jurisprudência é o de ´manter as criaturas autoconscientes de suas ações a fim de não colidirem entre si´, colisão essa que só é evitável na medida em que suas ações se deixem pautar por regras que possam ser universalizadas. (Rio de Janeiro, Ed. de Ouro, pp. 76-77, 1968).
Pelo Contrato Social, os homens constituem o Estado e o seu ordenamento jurídico, isto é, o Direito. Ao passar do estado natural para o estado civil, o homem abandona sua liberdade natural pela liberdade civil. O contrato social, ao criar o Estado também cria simultaneamente a sociedade civil. “Um Estado (civitas) – diz Kant, na “Metafísica dos Costumes” – é a união de uma multidão de seres humanos submetida a leis de direito” (Kant, Metafísica...p. 155, 2003). Como o Estado é a sociedade civil juridicamente organizada, regulamentada, um implica o outro. Mas não devemos confundir sociedade com sociedade civil, pois uma sociedade pode existir sem um Estado ( o caso dos índios, p. ex.), isto é, no estado de natureza.


Fonte: Internet.

A concepção do Estado em Kant é a do Estado liberal. Seu primeiro objetivo é o bem comum. E por bem comum entenda-se o bem de cada indivíduo. Sua finalidade é preservar a liberdade individual. Quer dizer, o Estado não é um fim em si próprio, pois tem por finalidade zelar pelos fins de cada indivíduo e dos indivíduos como múltiplos. Seu papel é atuar para que os indivíduos realizem seus próprios fins. Sua tarefa é resolver conflitos e remover obstáculos que possam impedir os homens de realizarem seus fins, de buscarem sua felicidade pessoal. Ao regular apenas as relações entre os indivíduos, sem se ater ao conteúdo de seus fins, resume-se a executar o papel de um guarda de trânsito e nada mais. Ao não interferir no conteúdo das ações, evita ser um Estado paternalista, ou totalitarista, um provedor de tudo que, além de criar a dependência do súdito, pode se transformar num Estado despótico, absolutista.
Portanto, a finalidade do Estado kantiano é garantir a livre ação dos indivíduos, preservando seus direitos civis. Norberto Bobbio assim descreve o caráter liberal do Estado kantiano:
Se a função do Estado é a constituição jurídica, é bem possível dizer que o estado kantiano é um estado de direito. A expressão ´estado de direito´, com a qual os juristas da segunda metade do século passado [séc. XIX] designaram o estado constitucional moderno, pode ser entendida de diferentes maneiras, mas dois são os significados principais: 1) ´estado de direito´ é o Estado limitado pelo direito, ou seja, o Estado cujo poder é exercido nas formas do direito e com garantias jurídicas pré-estabelecidas; e nessa acepção contrapõe-se ao estado absoluto; 2) ´estado de direito´ é o Estado que tem como função principal e específica a instituição de um estado jurídico, ou seja, de um Estado no qual, segundo a definição kantiana do direito, cada um possa coexistir com os outros segundo uma lei universal: e nesta acepção contrapõe-se ao estado do eudemonismo. Parece então fora de qualquer dúvida que o conceito que Kant tem do Estado deve corresponder exatamente a esta segunda acepção do estado de direito, segundo a qual o Estado não tem uma ideologia própria, seja ela religiosa, moral, econômica; mas, através da ordem externa obtida por meio do respeito ao direito, permite, ao grau máximo, a expressão e a situação dos valores e das ideologias de cada um dos seus membros. Do que foi dito até agora, e do conceito que Kant tem do direito, não há dúvida de que a concepção que Kant tem do Estado é uma concepção jurídica, ou seja, a instituição e a manutenção de um ordenamento jurídico como condição para a coexistência das liberdades externas. (Parte IV, p. 135, 1984).
       Quer dizer, um Estado só é Estado se for um Estado Jurídico. Se não o for, será tudo, menos Estado: será uma quadrilha de bandidos ou coisa que o valha, mas não Estado.


2.1– O CONTRATO SOCIAL: ESTADO DE NATUREZA E ESTADO CIVIL – DIREITO PROVISÓRIO E DIREITO PEREMPTÓRIO


Fonte: Internet.

Para Hobbes, o estado de natureza é um estado de guerra permanente entre os indivíduos, onde o homem é lobo do próprio homem. O contrato social visa controlar essa natureza perversa do homem, estabelecendo a paz e o direito de cada um, graças ao Leviatã – ou seja, ao Estado. Os súditos transferem todos os seus direitos para o soberano, em troca de proteção, e o Estado se transforma num ente totalitário ou ab­solutista. Kant, evidentemente, não concorda com isto. Já para Locke, o estado de na­tureza é um estado de paz e racionalidade, mas muito frágil. Tão frágil que não garan­tiria o direito de propriedade, que é o fundamento da liberdade, segundo Locke (para Kant, a liberdade é que seria o fundamento da propriedade e não o contrário). A pro­priedade, para Locke, é um direito natural, pois se fundamenta no trabalho de cada um e o trabalho é um dom natural do homem. Logo, o contrato social visa somente criar uma instância permanente e forte para garantir esse direito: o Estado. Em Locke encontra-se a semente de uma distinção entre sociedade civil e Estado, pois, no “Segundo Tratado sobre o governo”, defende o direito de rebelião. A sociedade civil tem o direito de derrubar qualquer soberano que não cumpra as obrigações para as quais foi destinado, pelo contrato social. Kant, por sua vez, condena o direito de rebe­lião, embora tenha apoiado a Revolução Francesa6. Para Kant seria absurdo que um soberano legalizasse o direito de conspiração e rebelião, pois isto seria dar carta bran­ca para os súditos o destituírem do poder, a seu bel prazer.
Kant fica numa posição intermediária entre o estado de guerra e o estado de paz (e racionalidade). A posição de Kant assemelha-se mais com a posição de Spino­za. Para este, o homem em estado de natureza luta para preservar seus direitos egoís­tas, visando sua própria conservação. Ingressa na sociedade política (Estado) pelos mesmos motivos egoístas em que vivia no estado de natureza e a sociedade civil é apenas um prolongamento daquela, pois o homem permanece nela somente para as­segurar, com mais força, sua própria sobrevivência: a união faz a força e por isso acei­ta o contrato social. Nada mais útil ao homem do que o próprio homem.
Kant diz que o estado de natureza não é necessariamente um estado de injusti­ça (cf. Kant, Met., Direito Público, p. 154, 2003), mas ainda é fraco para garantir os direitos dos homens, dentre estes, o direito de propriedade.
Kant diz que a posse, no estado de natureza é verdadeira, quer dizer, legítima. Mas ela é assegurada fragilmente, por particulares (família, clã, tribo etc.), sendo, portanto, instável. Isto é, para existir a propriedade (e não “posse”) é preciso haver um Estado que a garanta como um direito7. Ora, no estado de natureza não existe Es­tado, então como a posse pode ser um direito? Kant afirma que os particulares são su­ficientes para oferecer o direito, mas não para o manter definitivamente. Quer di­zer, o direito de propriedade – como todos os direitos – são legítimos, mas apenas provisórios e não peremptórios (definitivos). Somente o Estado (instituído pelo contrato social que estabeleceu a sociedade civil) pode garantir direitos, definitiva­mente.
Enfim, o pacto é para tentar evitar uma possível injustiça. E injustiça é impedir a efetivação da liberdade dos outros. Por isso a coerção se justifica como meio para retirar os obstáculos que impedem a realização da liberdade. Direito implica coerção. Direito é a garantia da liberdade de cada um na condição de sua concordância com a liberdade dos outros. O fim do Direito é garantir a liberdade de cada um e a regulação da forma das relações entre os homens, e não o fim a que cada homem põe a si mes­mo. E só existe direito se valer para todos. Daí o Direito implicar na liberdade, na igualdade (universalidade) e na colegislação (cada homem se torna um legislador, após o pacto) (cf. Sousa, p. 183, 2012).


2.2 – DIREITO PRIVADO E DIREITO PÚBLICO (EM KANT: DIREITO NATURAL E DIREITO CIVIL)
Para alguns juristas, todo direito é público, pois ele só existe a partir da criação do Estado e se todo direito emana do Estado, então todo direito é público. Poder-se-ia somente falar dos direitos “dos privados”, que seriam assegurados pelo Estado. Mas no fundo, tal direito seria público. Como Kant resolve essa aporia (dificuldade) ou aparente contradição?
Ora, Kant diz que o direito privado é o direito natural. Não é um direito civil porque ainda não existe o Estado, mas é um direito verdadeiro, legítimo e a criação do Estado existe apenas para garanti-lo e não para usurpá-lo.
Assim, para Kant, o direito privado corresponderia ao direito natural e o direito público ao direito civil. Na “Introdução” da Metafísica dos Costumes, Kant assim fala sobre o direito privado:
A divisão superior do direito natural não pode ser a divisão (por vezes fei­ta) em direito natural e direito social; em lugar disso, tem que ser a divisão em direito natural e direito civil, o primeiro sendo chamado de direito natu­ral e o segundo de direito público, pois o estado de natureza não se opõe à condição social, mas apenas á condição civil, visto ser certamente possível haver sociedade em estado de natureza, mas não sociedade civil (a qual garante o que é meu e teu mediante leis públicas). Esta é a razão porque [por que] o direito num estado de natureza é chamado de direito privado. (p. 88, 2003).
Em Kant, pois, o direito privado corresponde ao direito natural e o direito público ao direito civil. E o que é que Kant entende por direito público? Na Metafísica dos costumes, na parte intitulada Direito Público, ele se explica:
O conjunto das leis que necessitam ser promulgadas, em geral a fim de criar uma condição jurídica, é o direito público. O direito público é, portanto, um sistema de leis para um povo, isto é, uma multidão de seres humanos, ou para uma multidão de povos que, porque se afetam entre si, precisam de uma con­dição jurídica sob uma vontade que os uma, uma constituição (constitutio), de sorte que possam fruir o que é formulado como direito. Essa condição dos indivíduos no seio de um povo na sua relação recíp­roca é chamada de condição civil (status civilis), e o conjunto dos indivíduos numa condição jurídica, em relação aos seus próprios membros, é chamado de Estado (civitas). (p. 153, 2003).
Assim, fica definido por Kant o que é o direito público, que trata ainda do direito cosmopolita. E no Terceiro Artigo definitivo de À paz perpétua, Kant rea­firma que o direito cosmopolita se limita às condições de hospitalidade universal. Não quer dizer que o estrangeiro tenha o “direito de hospitalidade”, mas sim o “direito de visita”, sem ser hostilizado.


2.3 – EVOLUÇÃO DA SOCIEDADE: ESTADO DE NATUREZA, SOCIEDADE CIVIL E SOCIEDADE ÉTICA
É uma exigência moral, por um princípio a priori da razão prática, que o homem salte da sociedade natural (sociedade sem Estado) para a sociedade civil (sociedade com Estado). Ora, Kant diz que a sociedade humana está sempre evoluindo para melhor. O homem deixou a sociedade natural para entrar na sociedade civil, mas esta não é a finalidade última da Humanidade. É preciso seguir adiante. Depois de aperfeiçoar a sociedade civil, concretizando o soberano bem político ou constituição civil perfeita (liberdade e paz), precisa de realizar o soberano bem ético, ou seja, a construção de uma sociedade ética, racional.
Senão, vejamos. Naturalmente, o homem possui uma socialidade insociável. Enquanto ser racional é social, convive com seus semelhantes, mas ao mesmo tempo é dotado de uma insocialidade (Ungesellikeit), pois é dotado de instintos, disposições, de inclinações irracionais, é atraído pelo mundo sensível, apegado aos bens materiais (cf. Kant – Ideia de uma história... Quarta Proposição). Por isso, vive em estado de primitivismo, de conflitos, de guerras. É um dever ético, racional, sair desse estado de minoridade para uma vida de maioridade, guiada pela razão (cf. Kant – Resposta à pergunta: que é Esclarecimento, p. 100, passim, 1974).
Em princípio, no estado de natureza, o homem vivia constantemente em con­flito com seus semelhantes, mas, ao mesmo tempo, em sociedade. Ao saltar para a so­ciedade civil deu um passo rumo ao progresso, à razão. Mas qual foi o móvel que o fez progredir? Qual o sujeito da História, aquilo que move os homens no progresso para melhor? Kant afiança que a natureza, por si mesma, possui uma astúcia (List) que faz com que os homens procurem a concórdia através da discórdia. Na Quarta Proposição de sua “Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopoli­ta”, Kant declara que “O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvi­mento de todas as suas [do homem] disposições é o antagonismo das mesmas na sociedade, na medida em que ele [antagonismo] se torna ao fim a causa de uma or­dem regulada por leis desta sociedade. Eu entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade [ungesellige Geselligkeit] dos homens” (Kant, Ideia..., p. 13, 1986). Quer dizer, o instinto natural dos homens faz com que eles entrem em conflitos, na defesa de seus interesses e esses conflitos podem crescer, se desenvolverem e até che­gar a proporções gigantescas, como a guerra entre países. Mas para que a natureza faz isso, por que induz os homens ao conflito? Para que os homens sejam estimulados a usar a razão, a aprenderam que não é o conflito, a guerra , que leva o indivíduo à sua sobrevivência, à sua humanidade, ao seu destino, à uma sociedade justa, ética - mas sim a razão. Esta, sim, é que deveria ser, desde o início, o móvel, o sujeito da Histó­ria, o guia da Humanidade, na busca de seu aperfeiçoamento moral, na realização de uma sociedade ética, onde coincidiriam todos os fins humanos ( Reino dos Fins, Rei­no de Deus).
Algumas passagens dessa obra de Kant servem para documentar sua posição:
Como o filósofo não pode pressupor nos homens e seus jogos, tomados em seu conjunto, nenhum propósito racional próprio, ele não tem outra saída se­não tentar descobrir, neste curso absurdo das coisas humanas, um propósi­to da natureza que possibilite todavia uma história segundo um determina­do plano da natureza para criaturas que procedem sem um plano próprio. Nós queremos ver se conseguimos encontrar um fio condutor para tal his­tória e deixar ao encargo da natureza gerar o homem que esteja em condi­ção de escrevê-la segundo esse fio condutor. (Kant, Ideia..., p. 10, 1986).
E, na mesma página, Kant ainda expõe:
Os homens, enquanto indivíduos, e mesmo povos inteiros mal se dão con­ta de que, enquanto perseguem propósitos particulares, cada qual buscan­do seu próprio proveito e frequentemente uns contra os outros, seguem inadvertidamente, como um fio condutor, o propósito da natureza, que lhes é desconhecido, e trabalham para sua realização, e, mesmo que conhe­cessem tal propósito, pouco lhes importaria. (Ibd.)
E, em sua obra sobre À Paz Perpétua (op. cit., p. 53, 1989), Kant assevera que pela natureza “o homem é coagido a ser, embora não um homem moralmente bom, contudo, um bom cidadão”. E, por fim (p. 54), garante que “a natureza quer irresisti­velmente que o direito, por fim, tenha o poder supremo”.
Ao deixar o estado de natureza, ao “abdicar de sua liberdade brutal e buscar tranquilidade e segurança numa constituição conforme leis” (Kant, Ideia..., Sétima Proposição, p. 17, 1986) por uma exigência ética (embora permaneça na sociedade ci­vil os direitos adquiridos no estado de natureza, a mudança de um estado para o ou­tro é qualitativa, racional, e não um mero progresso empírico), o homem passa para a sociedade civil. Porém esta não é o destino final do homem; ele precisa progredir no sentido de alcançar o bem político supremo, isto é, a sociedade política perfeita ou constituição perfeita. Evidentemente, esta sociedade política perfeita é uma ideia da razão. Compreenda-se por sociedade política perfeita, por definição, a sociedade em que foram conquistados os direitos de expressão (liberdade de pensamento) e a paz perpétua, sob um regime republicano. O Primeiro Artigo Definitivo para a Paz Perpé­tua reza claramente que “A constituição civil em cada Estado deve ser republicana” (Kant, À paz..., p. 33).
Por paz perpétua não se deve entender a paz dos mortos no cemitério (embora Kant tenha se inspirado na paz dos cemitérios para intitular sua obra), mas uma paz permanente entre os vários Estados da Terra. Em nosso planeta, os Estados vivem em estado de guerra, conflitando uns contra os outros, tais como, em Hobbes, os indiví­duos viviam em guerra entre si. Ora, enquanto esse estado de beligerância real ou possível permanecer, a Humanidade viverá em perigo. E uma paz momentânea será apenas um armistício8. Será necessária uma instância jurídica acima dos Estados par­ticulares para lutar por uma paz duradoura. Kant então sugere criação de uma Liga dos povos9 para se encarregar dessa paz perpétua. Evidentemente que essa paz é apenas uma ideia da razão, pois no mundo empírico, muitos desvios podem aconte­cer. Mas é um ideal pelo qual todos os homens de boa vontade devem lutar.
Este soberano bem político (liberdade e paz) deve ser uma conquista necessá­ria, pois sem ela não será possível avançar para a realização de uma sociedade racio­nal, ética, que será a suprema conquista do homem sobre a terra.

Leonardo da Vinci: o Homem.
Fonte: Internet.


3.0 - A SOCIEDADE ÉTICA E O FIM-TÉRMINO DO HOMEM
Cada homem, ao lutar por sua existência, procura estabelecer uma finalidade para sua vida. Cada um procura realizar seu objetivo, seu fim ou fins. Cada homem, por si, deseja realizar seus sonhos, seus ideais. Mas como os homens nem sempre agem racionalmente, os fins de cada um ou de alguns acabam conflitando com os fins de outro ou de outros. Se todos os homens agissem racionalmente, esses fins não se conflitariam entre si e os homens facilmente alcançariam seus objetivos particulares, em consonância com os objetivos gerais. Mas nem sempre esse é o caso. Por isso, o dever moral obriga o homem a agir racionalmente, de modo que sua conduta particu­lar seja compatível com a conduta universal (conforme já dizia o imperativo categóri­co) a fim de alcançar o mundo inteligível, um mundo racional. Quer dizer, o homem, em sua vida cotidiana, pode roubar galinhas, caluniar, mentir etc., mas não deve que­rer que isso seja uma conduta moral, legítima, não deve pretender que tais atos pos­sam se transformar numa lei universal, porque isso levaria à desagregação da socie­dade, ao caos, à ruína, ao irracionalismo. De fato, empiricamente, pode-se errar, mentir, mas não pretender, racionalmente, que o erro ou a mentira seja moral ou ju­ridicamente correto. O erro (moral ou jurídico) não gera direito, gera correção ou pu­nição, se tal ocorrer numa sociedade justa.
Pois bem, o conjunto de todos esses fins que cada homem propõe para si mes­mo constitui, segundo Kant, o “Reino dos Fins”. No final de sua obra “Fundamenta­ção da metafísica dos costumes”, Kant fala sobre o reino dos fins nos seguintes ter­mos:
De resto a ideia de um mundo inteligível puro, como o conjunto de todas as inteligências, ao qual pertencemos nós mesmos como seres racionais (posto que, por outro lado, sejamos ao mesmo tempo membros do mundo sensível), continua a ser um Idea utilizável e lícita em vista de uma crença racional, ainda que todo o saber acabe na fronteira deste mundo, para, por meio do magnífico ideal de um reino universal dos fins em si mesmos (dos seres racionais), ao qual podemos pertencer como membros logo que nos conduzamos cuidadosamente segundo máximas da liberdade como se elas fossem leis da natureza, produzir em nós um vivo interesse pela lei moral. (p. 116, 1986).
Quer dizer, o reino dos fins só poderia ocorrer numa sociedade ética, que seria construída após a conquista da sociedade política perfeita ou constituição civil perfeita.


3.1- A EXTINÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO
Uma sociedade que alcance o seu objetivo ético, não precisaria de Estado e, portanto, de Direito. É verdade que jamais uma sociedade seria totalmente perfeita, pois enquanto o homem estiver sob o domínio do mundo sensível, estará sujeito a desvios e erros, de modo que essa sociedade ética é uma ideia da razão, uma ideia re­gulativa da razão prática (moral) e orientativa da razão teórica pura (pois nos induz a ver o mundo como totalidade, como sistema, tendo como princípio orientador e siste­matizador de tudo – Deus).
Mas mesmo sendo uma ideia da razão, é moralmente necessária, pois nos guia no rumo da perfeição moral. Mesmo que não possamos alcançar a perfeição absoluta, devemos tentar, buscar, a cada momento, essa perfeição. É conhecida a máxima de Kant: se devo, posso.
Kant assegura que numa sociedade ética, as ações dos homens seriam livres e jamais deveria haver coação. Portanto, as normas jurídicas seriam eliminadas e o Es­tado, que as garantiriam, seria inútil e, logo, extinto. Em outras palavras, Estado e Di­reitos seriam meios e não fins. Meios a serviço da Humanidade em sua caminhada pelo seu aperfeiçoamento moral, pela realização da sociedade ética ou reino de Deus sobre a terra.
Como se nota, é comum esta posição (contrária ao Estado) tanto em Kant como em Marx - como nos anarquistas. Mas o Estado, no atual momento his­tórico, certamente é um mal necessário.

Fonte: Internet.

3.2 – A ABOLIÇÃO DAS RELIGIÕES ESTATUTÁRIAS OU POSITIVAS; EXISTE APENAS UMA ÚNICA RELIGIÃO, QUE É INVISÍVEL
As religiões positivas, tais como as vemos hoje, numa sociedade ética também seriam extintas. Não existiriam cultos, missas, rituais, aparatos, sacerdotes ou pasto­res, pitonisas, livros sagrados ou qualquer ato cerimonial. A religião verdadeira é úni­ca para todos os homens e os mandamentos divinos seriam leis morais enviados por Deus diretamente para cada indivíduo, sem necessidade de intermediações, cerimô­nias ou rituais. Não é que Kant seja contra tais coisas. Apenas diz que elas, atualmen­te, tem apenas um valor educativo, mas numa sociedade ética (racional), tais recursos não seriam mais necessários. Do meu livro sobre Kant estou pinçando a seguinte pas­sagem, que condensa muito do que foi dito acima:
Esta sociedade ética ou Igreja Invisível ou Reino de Deus é comparada a uma sociedade familiar ou comuna [cf. Kant – La Religión..., Terceira Parte, p. 98, 1986] Nela não haverá sacerdotes ou funcionários da Igreja, pois Deus é seu legislador, e cada membros receberá as leis morais imediatamente de Deus. Kant diz que a única coisa que Deus pede ao homem para lhe agra­dar é seu bom comportamento, isto é, a prática da virtude. Mas o homem não se contenta com isso e, ainda que sabendo que só pode influir sobre outros seres do mundo e não em Deus, mesmo assim pensa que pode hon­rar e venerar ao Senhor através de atos estatutários, e cria assim as Igrejas Eclesiais. Porque pensa que []
[…] todo gran señor del mundo tiene uma particular necesidad de ser honra­do por sus súditos y ensalzado [exaltado] mediante pruebas de sumisión como necesita para poder dominarlos, y además el hombre, por razonable que sea, encuentra siempre em lãs demonstraciones de honor um placer inmediato, por eso se trata el deber, em tanto que es a la vez mandamiento divino, como gestión de un asunto de Dios, y así surge en concepto de una Religión del servicio [culto] de Dios en vez del concepto de una Religión moral pura (Kant – La Religión, Terceira Parte, op. cit., p. 104, 1986).
Mas as Igrejas Visíveis, estatutárias, com base em leis reveladas, tradicio­nais, históricas, devem ter seus fundamentos nas leis da Igreja Invisível, sob pena de serem falsas. A fé nelas é uma fé histórica e não uma fé religiosa racional. Isto é, elas devem poder ser reduzidas à Igreja Natural (racional, invisível), mas Kant diz que a única que pode ser, no final, confundida com a Igreja Racional é a Igreja Cristã” (Sousa, p. 224, 2012).
Isto significa dizer que – segundo Kant - embora outras religiões possuam em sua doutrina muitos elementos compatíveis com a Igreja Invisível, o Cristianismo é a que mais se aproxima dessa igreja inteligível, ideal.


3.3 – O SOBERANO BEM FINAL: O CASAMENTO DA VIRTUDE COM A FELICIDADE
Como vimos anteriormente, o soberano bem político da Humanidade é a liber­dade civil e a paz perpétua. Mas este soberano bem não é o bem supremo do homem. O bem supremo, o bem final, o fim-término (Endzweck) é a junção da virtude com a felicidade. No mundo terreno, o homem deve priorizar a virtude e não a felicidade, embora seja um dever moral lutar pela felicidade própria e a dos outros. Por virtude deve-se entender a firme disposição de cumprir o dever (moral). Por felicidade com­preende-se a satisfação de todas as nossas necessidades. Como isso é impossível no mundo empírico, devemos ao menos lutar para conseguir esse ideal (Kant fala ainda de outro tipo de felicidade, que é a satisfação pessoal com seu próprio comportamen­to, pelo seu aperfeiçoamento moral).
Ocorre que, no mundo empírico, nem sempre a virtude anda de par com a feli­cidade e, no caso de conflito entre uma e outra, o homem deve optar pela virtude, mesmo que isto lhe cause infelicidade. Daí a moral postular a imortalidade, para que o virtuoso não tenha vivido em vão. Veja-se que Kant não afirma que não possamos ser felizes neste mundo ou que a felicidade seja incompatível com a virtude. Apenas assevera que a felicidade plena é que não é possível neste mundo sensível e que nem sempre a virtude anda junto com o nosso bem estar. Mas devemos laborar para que as duas coisas aconteçam.
Ora, a sociedade mais propícia para que o homem se realize, se não plenamen­te, mas pelo menos o máximo possível é a sociedade ética. Mas, esta só será exequível depois que o homem tiver alcançado a sociedade política perfeita. Por sociedade po­lítica perfeita, Kant entende a sociedade que tenha alcançado a liberdade (de expres­são, de locomoção etc) e a paz perpétua. Somente depois disso será possível lutar pela sociedade ética, onde poderá ocorrer a realização do “reino dos fins”, quer dizer, o lo­cus onde todas as finalidades de cada homem possam convergir para uma sociedade justa e harmônica, onde reine não só a paz e a liberdade, como também o cumpri­mento dos mandamentos éticos. Numa sociedade assim, o homem poderá viver vir­tuosamente, condignamente e, desse modo, aspirar à vida eterna.
É conveniente lembrar que a sociedade ética é apenas uma ideia da ra­zão. Mas é moralmente um dever de cada um agir para realizá-la.


4.0 – A REALIZAÇÃO DO HOMEM
Sobre a realização do homem, existem duas posições doutrinárias fundamentais: uma que diz que o ser humano se realiza aqui mesmo no mundo terrenal e a outra que afirma que sua realização plena só ocorre no mundo do Além (transcendente).
A primeira posição seria a dos materialistas e a segunda a dos idealistas (ou espiritualistas). Veremos ligeiramente o significado das duas correntes a seguir.


4.1.0 – A REALIZAÇÃO DO HOMEM NO MUNDO TERRENAL (MARX ETC)
Como representante da corrente ou sistema materialista, escolhemos Karl Marx. Este pensador alemão, de fama mundial, afirma que o destino do homem se rea­liza aqui mesmo, neste mundo, mas para isso seria necessária acabar com qual­quer tipo de sociedade baseada na exploração do homem, seja ela escravagista, feuda­lista ou capitalista. Marx prega a derrubada do regime capitalista e a construção de uma sociedade comunista para que seja possível a realização do homem na terra.
Através de uma revolução seria possível destruir o sistema capitalista. Mas como as relações de produção e de sociedade (direito burguês) ainda existiriam mes­mo sob a existência de uma sociedade socialista revolucionária, Marx prega um regi­me de transição. Quer dizer, entre a sociedade capitalista derrubada e a existência de um socialismo pleno (comunismo) ocorreria um período intermediário, que seria o período da Ditadura do proletariado. No opúsculo “Crítica do programa de Gotha”, assegura Marx, textualmente:
Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o período da transformação revolucionária de uma para a outra. A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado.10
Isto significa que o comunismo (socialismo pleno) não será implantado abrup­tamente (de imediato, ocorreria somente a socialização dos principais meios de pro­dução, como o latifúndio, as grandes fábricas, o sistema financeiro etc.), mas gradati­vamente. Na verdadeira sociedade comunista, o Estado e o Direito seriam abolidos. O Estado deixaria de ser uma máquina de governar homens, para ser uma máquina de administrar as coisas. Numa sociedade sem Estado e sem propriedades privadas, pre­valeceria o lema: de cada um, segundo sua capacidade, a cada um, segundo suas necessidades. Com a abolição do Estado, não existiria nem sistema econômico-políti­co de representação nem de cogestão, mas de autogestão. A sociedade gerenciaria a si mesma e todos viveriam bem. É por causa da concepção deste tipo de sociedade que os críticos de Marx o chamam de utópico. Quer dizer, tal comunidade seria uma Uto­pia, como a de Tomas Morus, Platão, Campanella, Francis Bacon etc., evidentemente ressalvando-se as diferenças necessárias.
Em verdade, Marx não promete felicidade para ninguém, pois esta é de nature­za subjetiva, é algo pessoal de cada um. Aponta apenas para a melhora nas condições materiais e sociais de existência como requisitos favoráveis para que cada um possa buscar sua própria felicidade. Esta seria um tipo de sociedade pregada também pelos anarquistas, com a diferença que estes não aceitam o período de transição, a chamada Ditadura do Proletariado. Para o anarquista, “si hay gobierno, yo soy contra”...
Enfim, para as sociedades de cunho materialista, a questão da religiosidade se­ria um problema de foro íntimo de cada um. Todos seriam livres para ser ateus ou re­ligiosos. O essencial seria o fim da exploração do homem pelo homem.
By Salvador Dalí.
Fonte: Internet.



4.1.1 – A REALIZAÇÃO DO HOMEM NO MUNDO TRANSCENDENTE (KANT ETC)
Para Kant, na sociedade ética ou racional não existiriam forças armadas ou re­ligiões positivas. Tal como no marxismo, o Estado seria abolido e, portanto, as nor­mas coativas, em outras palavras, o Direito estaria também extinto. A sociedade ética seria a concretização do “Reino dos Fins” ou “Reino de Deus”. Não haveria templos, sacerdotes ou pastores, hierarquias, templos etc. Os homens receberiam os manda­mentos morais diretamente de Deus e só haveria uma única religião: a religião invisí­vel, existente no coração de cada um.
Kant chega mesmo a dizer que não se deveria pronunciar a palavra “religião” publicamente, para se referir a qualquer religião atual, mas sim usar o termo “cren­ça”: crença judaica, crença islâmica, crença cristã, crença hinduísta etc., pois religião mesmo só há uma, a invisível, estabelecida por Deus na consciência de cada homem.
Kant então assegura que a sociedade ética serve para que o homem seja feliz na terra; mas aqui, embora possa ser feliz, jamais atingirá a felicidade plena. Esta só ocorrerá no mundo inteligível ou noumênico, isto é, no mundo transcendente11. Os homens daqui deverão praticar a virtude para serem dignos da felicidade. Mas como não há garantia de que sejam plenamente felizes, neste mundo material, é preciso postular a imortalidade da alma como condição de uma bem-aventurança eterna. So­mente no mundo do Além seria perfeito o casamento da virtude com a felicidade – e esta seria o soberano bem final – o fim-término (Endzweck) do ser humano (ver Kant – A religião nos limites da simples razão).


5– CONCLUSÃO
A título de conclusão, diremos algumas palavras sobre a importância de ler Kant hoje e futuramente. Se não bastasse sua defesa do direito de livre expressão e de hospitalidade universal, ele coloca um valor perene na história da Humanidade: a im­portância da ética na política. Na vida prática, os homens, desde que fizeram política, frequentemente deixavam a ética de lado. Mas foi somente a partir de Maquiavel (ver O Príncipe) que a separação entre ética e política foi defendida numa obra de grande fôlego, teoricamente.
Maquiavel declara que aquele que age honestamente no meio de tantos que são maus, está condenado ao fracasso. E o político não quer fracassar, mesmo que para vencer tenha que sacrificar a ética: para o político desalmado, “o feio é perder”. Em Maquiavel, a política se transformou num mero jogo de poder em que a vitória de­pende que quem tem mais força e esperteza.
Ora, para Kant a finalidade da vida humana na terra é o seu aperfeiçoamento moral e a política, por consequência, precisa se submeter a essa ética. E o ideal seria construir uma sociedade justa, onde não exista a exploração do homem pelo homem – Kant defende que nenhum homem deve ser tratado como meio – e onde cada um possa realizar sua liberdade, de par com os seus fins legítimos, racionais.
O mundo contemporâneo necessita de justiça, de ética, precisa de combater qualquer tipo de sociedade que se fundamente na exploração do homem pelo homem, como a sociedade atual, que existe apenas para a satisfação de minorias cada vez mais elitistas, e que usam o povo explorado como massa de manobra para a realização de seus interesses pessoais.
Por isso, lutar por uma sociedade justa continua sendo uma exigência ética, um “postulado da razão”, que deve estar na consciência de todo homem de bem.


6 – BIBLIOGRAFIA
Indicamos a seguir algumas obras úteis para um início de estudos sobre Kant. Como são livros para uma simples introdução à filosofia do direito, limitamo-nos a enumerar apenas escritos em línguas portuguesa e espanhola.


Bobbio, Norberto – Direito e Estado no pensamento de Emmanuel Kant, Brasília, UnB, 1984.
Ferraz, Carlos Adriano – Do juízo teleológico como propedêutica à teologia moral em Kant, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2005.
Herrero, Francisco Javier – Religião e história em Kant, São Paulo, Loyola, 1991.
Kant, Immanuel – Crítica da razão prática, Lisboa, Edições 70, 1999.
Kant, I. – À paz perpétua, Porto Alegre/São Paulo, L&PM, 1989.
Kant, I. – Metafísica dos Costumes, Bauru/São Paulo, EDIPRO, 2003.
Kant, I. – “Textos seletos” (ed. bilíngue, Português e alemão), Rio de Janeiro, Petrópolis, Vozes, 1974 (contém, dentre outros, o artigo de Kant – Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?).
Kant, I. – Crítica da faculdade do juízo, Rio de Janeiro, Forense, 1993.
Kant, I. – “Filosofía de la historia”, Buenos Aires, Editorial Nova, 1964.
Kant, I. – “Filosofía de la história”, México, Fondo de Cultura Económica, 1997.
Kant, I.- Fundamentação da metafísica dos costumes, Lisboa, Edições 70, 2001.
Kant, I. – Ideia de uma historia universal de um ponto de vista cosmopolita (ed. bilíngue, português e alemão), São Paulo, Editora Brasiliense, 1986.
Kant, I. – La religión dentro de los limites de la razón, Madrid, Alianza Editorial, 1986.
Kant, I. – O conflito das faculdades, Lisboa, Edições 70, 1993 (ver especialmente o artigo: Questão renovada: estará o gênero humano em constante progresso para melhor?).
Kant, I. – Sobre a pedagogia – Piracicaba, Editora UNIMEP, 2006.
Salgado, Joaquim Carlos – A ideia de justiça em Kant, Belo Horizonte, UFMG, 1986.
Sousa, Noé Martins – A filosofia de Kant – A moral como fio condutor da articulação do sistema kantiano, Fortaleza, EdUECE, 2012.
Vincent, Luc – Educação e LiberdadeKant e Fichte, São Paulo, UNESP, 1994.
Zingano, Marco Antônio – Razão e historia em Kant, São Paulo, Brasiliense, 1989.





Para citar este documento (ABNT/NBR 6023: 2002):
SOUSA, Noé Martins: Kant - Estado e Direito: Origem e Evolução. Praxis Jurídica, Ano II, N.º 02, 13.02.2015 (ISSN 2359-3059). Disponível em: <http://praxis-juridica.blogspot.com.br/2015/02/kant-estado-e-direito-origem-e-evolucao.html>. Acesso em: .


1A palavra alemã Aufklärung, em línguas neolatinas, ora é traduzida por Iluminismo, ora por Esclare­cimento, ora por Ilustração.
2Kant, na página seguinte (31), explica o que entende por máxima moral: “Máxima é o princípio subjetivo do querer; o princípio objetivo (isto é o que serviria também subjetivamente de princípio prático a todos os seres racionais, se a razão fosse inteiramente senhora da faculdade de desejar) é a lei prática”.
3Uma ação é boa ou o que é praticamente bom – diz Kant – é “aquilo que determina a vontade por meio de representações da razão, por conseguinte não por causas subjetivas, mas objetivamente, quer dizer por princípios que são válidos para todo ser racional como tal” (Fundamentação..., p. 48, 2001).
4Kant, na obra Fundamentação..., desdobra essa fórmula em mais duas: 1) não tratar o homem como meio, mas como fim e, 2) agir sempre de tal modo que a sua vontade possa se tornar uma lei da natu­reza. Posteriormente, na KpV, Kant conserva apenas a fórmula geral, já citada. Daí seus críticos dize­rem que sua moral é puramente formalista.
5Zingano, em sua tradução de À paz perpétua (p. 60, 1989), traduz melhor o final da citação acima: “A divindade tutelar da moral não cede a Júpiter (a divindade tutelar do poder)”. A tradução francesa de J. Gibelin (Paris, J, Vrin, p. 55, 1947) afirma: “Le dieu Terme de la morale ne le cède pas à Jupiter (le dieu Terme de la force)”. No original alemão: “Der Grenzgott der Moral weicht nicht dem Jupiter (dem Grenzgott der Gewalt)” (in “Textos seletos”, p. 131, 1974). O verbo “weichen”, além de significar retroceder, retirar-se, significa também ceder, que consideramos a tradução mais apropriada.
6Lucien Goldmann, em sua obra “Origem da dialética – a comunidade humana e o universo em Kant” (Parte 4, p. 240, passim, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967), justifica essa aparente contradição de Kant, de ser contra a rebelião e ao mesmo tempo apoiar a Revolução Francesa. Ele argumenta que Kant é contra a rebelião, mas, uma vez que o povo rebelado tenha se tornado vitorioso, já será então um governo e, portanto, tem o direito de exigir obediência dos súditos. Quer dizer, ninguém possui o “direito” de rebelião. Ou seja, quem quiser rebelar-se, conspirar, burlar a lei, que o faça por conta e ris­co próprio. Mas, uma vez vitoriosos os revolucionários, os vencidos lhes devem obediência. Cabe aqui o ditado do nosso Machado de Assis: “ao vencedor, as batatas”.
7Sobre posse e propriedade em Kant, ver Salgado (p. 300, 1986), in nota.
8Kant firma, no primeiro artigo preliminar sobre a paz perpétua entre os Estados, que não deve haver má fé nos tratados de paz: “Não deve viger nenhum tratado de paz como tal que tenha sido feito com a reserva secreta de matéria para uma guerra futura”. Alega ele que “então seria um simples armistí­cio, suspensão das hostilidades, não paz, que significa o fim de todas as hostilidades, e atrelar-lhe o ad­jetivo de perpétua é já um pleonasmo suspeito” (op. cit., p. 26).
9No Segundo Artigo Definitivo para a Paz Perpétua (op. cit., p. 38), Kant afiança: “Povos, como Estados, podem ser julgados como homens individuais, que em seu estado de natureza (isto é, na independência das leis exteriores) já se lesam por seu estar-um-ao-lado-do-outro e do qual cada um, em vista de sua segurança, pode e deve exigir do outro entrar com ele em uma constituição similar à civil, em que cada um pode ficar seguro de seu direito. Isto seria uma liga dos povos”. Depois da Primeira Guerra Mundial, para defender a paz e o direitos dos povos, foi criada a Liga das Nações que, ao fracassar por não ter conseguido evitar a Segunda Guerra Mundial etc., foi extinta. Depois desta, foi criada a Organização das nações Unidas (ONU), que, como a primeira organização, tem sido apenas uma Ideia Regulativa da Razão...
10Marx /Engels – Werke, 45 Bänden (volumes), Institut für Marxismus-Leninismus beim ZK der SED, Dietz Verlag Berlin, 1982-1989. Utilizamos o volume 29, p. 28. A obra “Kritik des Gother Pro­gramms” está nas páginas 11-32.

11É preciso lembrar que, em Kant, transcendental não é o mesmo que transcendente. Transcendental são as formas a priori (categorias e espaço-tempo) que entram na composição do conhecimento, orde­nando o mundo sensível (ver KrV); e transcendente é o mundo noumênico, o mundo da coisa-em-si, o mundo suprassensível, o mundo da imortalidade da alma, o mundo do Além, o mundo de Deus, en­fim.



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