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Cicero
Denounces Catiline, by Cesare Maccari, 1889.
Fonte: Internet.
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Noé
Martins de Sousa
Natural
de Pentecoste - CE, foi professor da Universidade Estadual do Ceará
(por mais de 30 anos), publicou o livro “A Filosofia de Kant –
A moral como fio condutor da articulação do sistema
kantiano”(2012), pela Editora da Universidade Estadual do
Ceará; editou dois artigos: “Estado e Partido no Marxismo
Leninismo”, in “Filosofia 2” (Cadernos UECE, EdUECE,
1995); “Alcântara Nogueira” (sobre a original interpretação de
Spinoza feita pelo pensador cearense), in Revista “CONATUS”,
vol. 5, números 9 e 10, EdUECE, 2011.
1.0
- Preliminares
1.1
- Liberdade: único direito inato
1.2
- Ação pelo dever e ação conforme o dever
1.3
- Imperativo categórico e Imperativo hipotético
1.4
- O Direito subordinado à Moral
2.0
- Origem do Estado e do Direito
2.1
- O Contrato Social: estado de natureza e estado civil – direito
provisório e direito peremptório
2.2
- Direito privado e direito público (em Kant – Direito natural e
Direito civil)
2.3
- Evolução da Sociedade: Estado de Natureza, Sociedade Civil e
Sociedade Ética
3.0
- A Sociedade Ética e o Fim-término do Homem
3.1
- A extinção do Estado e do Direito
3.2
- A abolição das religiões estatutárias ou positivas: existe
apenas uma única religião, que é invisível
3.3
- O soberano bem final: o casamento da virtude com a felicidade
4.0
- A realização do homem
4.1-0 - A realização do homem no mundo terrenal (Marx etc)
4.1.1 - A
realização plena do homem no mundo transcendente (Kant etc)
4
- Conclusão
5
- Bibliografia
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Immanuel Kant. Fonte: Internet. |
-
- PRELIMINARES
As
principais obras de Kant, para quem deseja iniciar um estudo sobre
sua filosofia do direito, são: “Crítica da razão prática”
(Kritik der
praktischen Vernunft-KrV);
“Fundamentação da metafísica dos costumes” (Grundlegung
zur Mataphysik der Sitten
- GMS); “Metafísica dos costumes” (Die
Mataphysik der Sitten),
especialmente a primeira parte que fundamenta o direito; “À paz
perpétua, um projeto filosófico” (Zum
Ewigen Frieden, ein philosophischer Entwurf);
“A religião dentro dos limites da simples razão” (Die
Religion innerhalb der blossen Vernunft),
ou seja, dentro da razão natural, sem apelar para a revelação
dogmática; “Ideia de uma história universal de um ponto de vista
cosmopolita” (Idee
zu einer Allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher
Absicht);
“Resposta à pergunta: que é o Iluminismo?” (Beantwortung
der Frage: Was ist
Aufkärung?)1;
“O conflito das faculdades” (Der
Streit der Fakuläten),
especialmente o artigo “Questão renovada: estará o gênero humano
em constante progresso para o melhor?”. Essas são as obras
essenciais, mas existem ainda vários artigos de Kant relacionados
com o assunto, geralmente publicados em coletânea sob o título de
“Filosofia da história”, que indicaremos na Bibliografia, no
final deste escrito.
1.1
- LIBERDADE: ÚNICO DIREITO INATO
Kant,
na “Crítica da razão prática”, postula a existências de três
ideias
da razão prática como os três pilares de sua Metafísica: a
Imortalidade da Alma, a Liberdade e a existência de Deus. Essas
ideias não precisam ser provadas, já que são postulados, embora
não sejam dogmas. Diz Kant, textualmente:
Estes postulados são os da imortalidade, da liberdade, considerada positivamente (como causalidade de um ser enquanto ele pertence ao mundo inteligível) e da existência de Deus. O primeiro decorre da condição praticamente necessária da conformidade da duração com a plenitude do cumprimento da lei moral; o segundo promana da suposição necessária da independência relativamente ao mundo sensível e da faculdade da determinação da sua vontade segundo a lei de um mundo inteligível, isto é da liberdade; o terceiro, da necessidade da condição requerida para um tal mundo inteligível ser o soberano bem, mediante o pressuposto do bem supremo independente, isto é, da existência de Deus. (KpV, Seg. Liv., Dialética da razão pura prática, VI, Sobre o postulado da razão pura prática em geral, p. 151, ed. de 1999- Ver Bibliografia).
Para
a finalidade desse escrito, vamo-nos ater ao postulado da liberdade.
Esta, no Direito, é o único direito inato do homem, todos os demais
direitos são adquiridos, inclusive o direito de posse ou
propriedade. Ao contrário de Locke, que fundamenta a liberdade na
propriedade, Kant diz que a liberdade é a própria condição da
existência da propriedade. A sociedade civil tem por finalidade a
garantia da liberdade e por ela se origina e perdura. Como bem o diz
Joaquim Carlos Salgado:
A liberdade é o “alfa” e o “ômega” [princípio e fim] da filosofia do direito de Kant; o contrato social é obra da vontade dos homens e tem por finalidade: criar a ordem jurídica. A ordem jurídica, por sua vez, como fruto da vontade dos homens, tem uma finalidade: cuidar da sua liberdade. O contrato nasce da liberdade para a liberdade. Disso resulta a importante consequência: o direito não existe por si e para si, mas para a liberdade. Superar a ´liberdade selvagem´- ´o que não é renunciar à liberdade inata externa´- por uma liberdade dependente da lei decorre da própria vontade de quem a ela se submete é constituir um Estado, cuja finalidade é guardar o direito. (Salgado, p. 295, 1986).
E
o cidadão, após o contrato social, não é apenas um súdito, mas
também um colegislador da sociedade política, por seu direito de
participação e representação. Portanto, ao obedecer à lei,
obedece somente a si mesmo, após fazer o consenso com outras
vontades.
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By Salvador Dalí. Fonte: Internet. |
1.2–AÇÃO
PELO DEVER E AÇÃO CONFORME O DEVER
Kant
faz distinção entre ação moral e ação jurídica, isto é, ação
pelo dever e ação conforme o dever. Uma ação é moral quando é
praticada sem interesses ou medo de coação etc. É cumprir o dever
por respeito à lei Moral (ver Imperativo Categórico). “Dever
é a necessidade de ação por respeito à lei”
[moral] (Kant, Fundamentação...,
p. 31, 2001).
Quer
dizer, os homens comumente agem conforme o dever, mas não pelo
dever. Na vida prática é impossível detectar quem age pelo dever
ou conforme o dever. Dois indivíduos, por exemplo, podem praticar o
mesmo tipo de ação, mas um pode estar agindo por dever e o outro
apenas conforme o dever. “Os homens conservam a sua vida conforme
ao dever, sem
dúvida, mas não por
dever” (Kant,
Fundamentação...,
p. 27, 2001). Um comerciante pode vender uma mercadoria por um justo
preço por dever moral e outro apenas conforme o dever. O que age
moralmente pode dizer: “vendo pelo preço justo porque essa é
minha obrigação moral”. Já o outro pode dizer para si mesmo:
“vendo a mercadoria pelo mesmo preço do meu concorrente, não por
dever moral, mas por receio de perder cliente e ficar arruinado” -
isto é, age por interesse outro que não o dever moral (cf. p. 27,
2001, op. cit.). Quer dizer, o conceito de dever inclui em si o de
boa vontade, boa intenção, e seu valor moral não depende de seu
efeito ou propósito externo. É o que assevera Kant: “Uma ação
praticada por dever tem o seu valor moral, não
no propósito que
com ela se quer atingir, mas na máxima2
que a determina; não depende portanto da realidade do objeto da
ação, mas somente do princípio
do querer, segundo
o qual a ação, abstraindo de todos os objetos da faculdade de
desejar, foi praticada” (idem, p. 30).
Em
suma, nesta distinção entre agir por dever e agir conforme o dever
está a distinção entre lei moral e lei jurídica. A lei moral para
ser cumprida não exige sanção ou coação, apenas a boa vontade.
Já a lei jurídica exige sempre ou quase sempre a coação, para ser
cumprida. Daí a exigência da criação do Estado, como garantia
permanente do seu cumprimento.
-
– IMPERATIVO CATEGÓRICO E IMPERATIVO HIPOTÉTICO
Kant
ainda faz distinção entre imperativo categórico e imperativo
hipotético. “A representação de um princípio enquanto obrigante
para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do
mandamento chama-se imperativo
(Kant, Fundamentação...,
p. 48, 2001). E a seguir, completa: “No caso de a ação ser apenas
boa3
como meio para qualquer
outra coisa, o
imperativo é hipotético; se a ação é representada como boa em
si, por conseguinte
como necessária numa vontade em si conforme a razão como princípio
dessa vontade, então o imperativo é categórico” (idem, p.
50).
O
dever moral é um imperativo categórico. E sua lei moral suprema
pode ser expressa da seguinte maneira: “Age
apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que
ela se torne lei universal”
(idem, p. 59)4.
O homem que segue essa lei está dentro de sua autonomia.
Porém,
no imperativo hipotético o homem deixa de ser autônomo (e,
portanto, não moral) para ser guiado pelas inclinações, por
objetos externos, ou seja, cai na heteronomia.
O imperativo hipotético se expressaria assim: se agires de tal modo,
receberás isto como recompensa; se agires de tal maneira, serás
castigado etc.
Ora,
tal imperativo deixa de ser moral, mas aplica-se perfeitamente ao
mundo jurídico: se cumprires a lei civil não serás preso ou
multado etc. Daí, mais uma vez, ser necessária a existência do
Estado, para fazer o rebelde cumprir a lei civil.
-
– O DIREITO SUBORDINADO À MORAL
Poderíamos
dizer que a moral nada tem a ver com o direito, o que seria um
equívoco. O cumprimento da lei moral é espontâneo, fruto da boa
vontade, mas o cumprimento da lei civil é feito por coação,
exigindo o Estado como agente coator. Porém uma não seria
incompatível com a outra, se os homens agissem racionalmente.
Daí o motivo por que Kant deseja que a Humanidade deva caminhar para
a construção de uma sociedade
ética, onde os
homens agiriam eticamente, espontaneamente, racionalmente,
recebendo os mandamentos morais diretamente de Deus [o “Autor
moral do mundo” –
cf. Kant – Crítica
da faculdade do juízo
(KU), 87, p. 290, 1993]. Numa sociedade assim, o Direito e, portanto,
o Estado, e também as religiões positivas, teriam sido todos
abolidos.
Como
a finalidade última da vida humana é o seu aperfeiçoamento moral,
na busca dessa sociedade ética, toda atividade humana seria
subordinada a esse soberano bem, o fim último (Endzweck)
do homem, ficando, pois, o direito subordinado à ética.
Kant,
em seu escrito Sobre
a discordância entre a moral e a política a propósito
da paz perpétua
(geralmente publicada como Apêndice em À
paz Perpetua)
afirma textualmente a ética como subordinante da política e que as
duas não podem ser incompatíveis entre si:
A moral é já por si mesma uma prática no sentido objetivo, enquanto totalidade de leis que ordenam incondicionalmente, de acordo com as quais devemos agir, sendo um evidente absurdo alguém, depois de ter admitido a autoridade deste conceito do dever, querer dizer que não se pode realizá-lo. Por que então este conceito cai por si mesmo (ultra posse nemo obligatur). Por conseguinte, não pode haver nenhum conflito entre política, enquanto doutrina do exercício do dever, e a moral como tal, mas teórica (portanto nenhum conflito entre a prática e a teoria). (in “Textos seletos”, p. 130, 1974).
E,
mais adiante, para que não permaneça qualquer dúvida, Kant
reafirma, categoricamente, como se estivesse se contrapondo a
Maquiavel:
Embora a proposição: a honestidade é a melhor política, contenha uma teoria que, infelizmente, a prática com muita frequência contradiz, a proposição igualmente teórica: a honestidade é melhor do que qualquer política, está infinitamente acima de toda objeção, sendo mesmo a condição indispensável da política. O deus Término da moral não é inferior a Júpiter (o deus Término do poder). (ibidem)”5.
Depois
desta citação, passamos a examinar a questão da origem do Estado
e, portanto, do Direito, segundo Kant.
2.0–
ORIGEM DO ESTADO E DO DIREITO
Kant
aceita a teoria contratualista dos jusnaturalistas dos séculos
XVII-XVIII. Mas para Kant esse contrato social é uma Ideia da Razão
(uma Ideia Regulativa ou Orientativa) e não um fato empírico. Na
Metafísica dos
Costumes, afirma
Kant:
O ato pelo qual o próprio povo se constitui em Estado, ou / melhor, a simples ideia deste ato, que só ela já permite conceber a sua legitimidade, é o contrato originário, segundo o qual todos (ommes et singuli) do povo deixam a liberdade externa para retomá-la novamente, já como membros de um corpo comum, ou seja, como membros do povo como Estado (universi). (Apud Bobbio, pp. 129-130, 1984).
Arch.
B. D. Alexander, M. D. D., assim coloca a problemática do direito em
Kant:
Como um ser autoconsciente e apesar disto um objeto particular no mundo, o problema da vida do homem é estabelecer a si próprio com relação a outros sujeitos, que, à semelhança dele, são também objetos particulares. A lei se torna, assim, uma determinação corretiva dos direitos e deveres, e o problema da jurisprudência é o de ´manter as criaturas autoconscientes de suas ações a fim de não colidirem entre si´, colisão essa que só é evitável na medida em que suas ações se deixem pautar por regras que possam ser universalizadas. (Rio de Janeiro, Ed. de Ouro, pp. 76-77, 1968).
Pelo
Contrato Social, os homens constituem o Estado e o seu ordenamento
jurídico, isto é, o Direito. Ao passar do estado natural para o
estado civil, o homem abandona sua liberdade natural pela liberdade
civil. O contrato social, ao criar o Estado também cria
simultaneamente a sociedade civil. “Um Estado (civitas)
– diz Kant, na “Metafísica dos Costumes” – é a união de
uma multidão de seres humanos submetida a leis de direito” (Kant,
Metafísica...p.
155, 2003). Como o Estado é a sociedade civil juridicamente
organizada, regulamentada, um implica o outro. Mas não devemos
confundir sociedade
com sociedade civil,
pois uma sociedade pode existir sem um Estado ( o caso dos índios,
p. ex.), isto é, no estado de natureza.
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Fonte: Internet. |
A
concepção do Estado em Kant é a do Estado liberal. Seu primeiro
objetivo é o bem comum. E por bem comum entenda-se o bem de cada
indivíduo. Sua finalidade é preservar a liberdade individual. Quer
dizer, o Estado não é um fim em si próprio, pois tem por
finalidade zelar pelos fins de cada indivíduo e dos indivíduos como
múltiplos. Seu papel é atuar para que os indivíduos realizem seus
próprios fins. Sua tarefa é resolver conflitos e remover obstáculos
que possam impedir os homens de realizarem seus fins, de buscarem sua
felicidade pessoal. Ao regular apenas as relações entre os
indivíduos, sem se ater ao conteúdo de seus fins, resume-se a
executar o papel de um guarda de trânsito e nada mais. Ao não
interferir no conteúdo das ações, evita ser um Estado
paternalista, ou totalitarista, um provedor de tudo que, além de
criar a dependência do súdito, pode se transformar num Estado
despótico, absolutista.
Portanto,
a finalidade do Estado kantiano é garantir a livre ação dos
indivíduos, preservando seus direitos civis. Norberto Bobbio assim
descreve o caráter liberal do Estado kantiano:
Se a função do Estado é a constituição jurídica, é bem possível dizer que o estado kantiano é um estado de direito. A expressão ´estado de direito´, com a qual os juristas da segunda metade do século passado [séc. XIX] designaram o estado constitucional moderno, pode ser entendida de diferentes maneiras, mas dois são os significados principais: 1) ´estado de direito´ é o Estado limitado pelo direito, ou seja, o Estado cujo poder é exercido nas formas do direito e com garantias jurídicas pré-estabelecidas; e nessa acepção contrapõe-se ao estado absoluto; 2) ´estado de direito´ é o Estado que tem como função principal e específica a instituição de um estado jurídico, ou seja, de um Estado no qual, segundo a definição kantiana do direito, cada um possa coexistir com os outros segundo uma lei universal: e nesta acepção contrapõe-se ao estado do eudemonismo. Parece então fora de qualquer dúvida que o conceito que Kant tem do Estado deve corresponder exatamente a esta segunda acepção do estado de direito, segundo a qual o Estado não tem uma ideologia própria, seja ela religiosa, moral, econômica; mas, através da ordem externa obtida por meio do respeito ao direito, permite, ao grau máximo, a expressão e a situação dos valores e das ideologias de cada um dos seus membros. Do que foi dito até agora, e do conceito que Kant tem do direito, não há dúvida de que a concepção que Kant tem do Estado é uma concepção jurídica, ou seja, a instituição e a manutenção de um ordenamento jurídico como condição para a coexistência das liberdades externas. (Parte IV, p. 135, 1984).
Quer
dizer, um Estado só é Estado se for um Estado Jurídico. Se não o
for, será tudo, menos Estado: será uma quadrilha de bandidos ou
coisa que o valha, mas não Estado.
2.1–
O CONTRATO SOCIAL: ESTADO DE NATUREZA E ESTADO CIVIL – DIREITO
PROVISÓRIO E DIREITO PEREMPTÓRIO
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Fonte: Internet. |
Para
Hobbes, o estado de natureza é um estado de guerra permanente entre
os indivíduos, onde o homem é lobo do próprio homem. O contrato
social visa controlar essa natureza perversa do homem, estabelecendo
a paz e o direito de cada um, graças ao Leviatã – ou seja, ao
Estado. Os súditos transferem todos os seus direitos para o
soberano, em troca de proteção, e o Estado se transforma num ente
totalitário ou absolutista. Kant, evidentemente, não concorda
com isto. Já para Locke, o estado de natureza é um estado de
paz e racionalidade, mas muito frágil. Tão frágil que não
garantiria o direito de propriedade, que é o fundamento da
liberdade, segundo Locke (para Kant, a liberdade é que seria o
fundamento da propriedade e não o contrário). A propriedade,
para Locke, é um direito natural, pois se fundamenta no
trabalho de cada um e o trabalho é um dom natural do homem. Logo, o
contrato social visa somente criar uma instância permanente e forte
para garantir esse direito: o
Estado. Em Locke
encontra-se a semente de uma distinção entre sociedade civil e
Estado, pois, no “Segundo Tratado sobre o governo”, defende o
direito de rebelião. A sociedade civil tem o direito de derrubar
qualquer soberano que não cumpra as obrigações para as quais foi
destinado, pelo contrato social. Kant, por sua vez, condena o direito
de rebelião, embora tenha apoiado a Revolução Francesa6.
Para Kant seria absurdo que um soberano legalizasse o direito de
conspiração e rebelião, pois isto seria dar carta branca para
os súditos o destituírem do poder, a seu bel prazer.
Kant
fica numa posição intermediária entre o estado de guerra e o
estado de paz (e racionalidade). A posição de Kant assemelha-se
mais com a posição de Spinoza. Para este, o homem em estado de
natureza luta para preservar seus direitos egoístas, visando
sua própria conservação. Ingressa na sociedade política (Estado)
pelos mesmos motivos egoístas em que vivia no estado de natureza e a
sociedade civil é apenas um prolongamento daquela, pois o homem
permanece nela somente para assegurar, com mais força, sua
própria sobrevivência: a união faz a força e por isso aceita
o contrato social. Nada mais útil ao homem do que o próprio homem.
Kant
diz que o estado de natureza não é necessariamente um estado de
injustiça (cf. Kant, Met., Direito
Público, p. 154,
2003), mas ainda é fraco para garantir os direitos dos homens,
dentre estes, o direito de propriedade.
Kant
diz que a posse, no estado de natureza é verdadeira, quer dizer,
legítima. Mas ela é assegurada fragilmente, por particulares
(família, clã, tribo etc.), sendo, portanto, instável. Isto é,
para existir a propriedade (e não “posse”) é preciso haver um
Estado que a garanta como um direito7.
Ora, no estado de natureza não existe Estado, então como a
posse pode ser um direito? Kant afirma que os particulares são
suficientes para oferecer o direito, mas não para o manter
definitivamente. Quer dizer, o direito de propriedade – como
todos os direitos – são legítimos, mas apenas provisórios
e não peremptórios
(definitivos). Somente o Estado (instituído pelo contrato social que
estabeleceu a sociedade civil) pode garantir direitos,
definitivamente.
Enfim,
o pacto é para tentar evitar uma possível injustiça. E injustiça
é impedir a efetivação da liberdade dos outros. Por isso a coerção
se justifica como meio para retirar os obstáculos que impedem a
realização da liberdade. Direito implica coerção. Direito é a
garantia da liberdade de cada um na condição de sua concordância
com a liberdade dos outros. O fim do Direito é garantir a liberdade
de cada um e a regulação da forma
das relações entre os homens, e não o fim a que cada homem põe a
si mesmo. E só existe direito se valer para todos. Daí o
Direito implicar na liberdade, na igualdade (universalidade) e na
colegislação (cada homem se torna um legislador, após o pacto)
(cf. Sousa, p. 183, 2012).
2.2
– DIREITO PRIVADO E DIREITO PÚBLICO (EM KANT: DIREITO NATURAL E
DIREITO CIVIL)
Para
alguns juristas, todo direito é público, pois ele só existe a
partir da criação do Estado e se todo direito emana do Estado,
então todo direito é público. Poder-se-ia somente falar dos
direitos “dos privados”, que seriam assegurados pelo Estado. Mas
no fundo, tal direito seria público. Como Kant resolve essa aporia
(dificuldade) ou aparente contradição?
Ora,
Kant diz que o direito privado é o direito natural. Não é um
direito civil porque ainda não existe o Estado, mas é um direito
verdadeiro, legítimo e a criação do Estado existe apenas para
garanti-lo e não para usurpá-lo.
Assim,
para Kant, o direito privado corresponderia ao direito natural e o
direito público ao direito civil. Na “Introdução” da
Metafísica dos
Costumes, Kant
assim fala sobre o direito privado:
A divisão superior do direito natural não pode ser a divisão (por vezes feita) em direito natural e direito social; em lugar disso, tem que ser a divisão em direito natural e direito civil, o primeiro sendo chamado de direito natural e o segundo de direito público, pois o estado de natureza não se opõe à condição social, mas apenas á condição civil, visto ser certamente possível haver sociedade em estado de natureza, mas não sociedade civil (a qual garante o que é meu e teu mediante leis públicas). Esta é a razão porque [por que] o direito num estado de natureza é chamado de direito privado. (p. 88, 2003).
Em
Kant, pois, o direito privado corresponde ao direito natural e o
direito público ao direito civil. E o que é que Kant entende por
direito público? Na Metafísica
dos costumes,
na parte intitulada Direito
Público, ele se
explica:
O conjunto das leis que necessitam ser promulgadas, em geral a fim de criar uma condição jurídica, é o direito público. O direito público é, portanto, um sistema de leis para um povo, isto é, uma multidão de seres humanos, ou para uma multidão de povos que, porque se afetam entre si, precisam de uma condição jurídica sob uma vontade que os uma, uma constituição (constitutio), de sorte que possam fruir o que é formulado como direito. Essa condição dos indivíduos no seio de um povo na sua relação recíproca é chamada de condição civil (status civilis), e o conjunto dos indivíduos numa condição jurídica, em relação aos seus próprios membros, é chamado de Estado (civitas). (p. 153, 2003).
Assim,
fica definido por Kant o que é o direito público, que trata ainda
do direito cosmopolita. E no Terceiro Artigo definitivo de À
paz perpétua, Kant
reafirma que o direito cosmopolita se limita às condições de
hospitalidade universal. Não quer dizer que o estrangeiro tenha o
“direito de hospitalidade”, mas sim o “direito de visita”,
sem ser hostilizado.
2.3
– EVOLUÇÃO DA SOCIEDADE: ESTADO DE NATUREZA, SOCIEDADE CIVIL E
SOCIEDADE ÉTICA
É
uma exigência moral, por um princípio a
priori da razão
prática, que o homem salte da sociedade natural (sociedade sem
Estado) para a sociedade civil (sociedade com Estado). Ora, Kant diz
que a sociedade humana está sempre evoluindo para melhor. O homem
deixou a sociedade natural para entrar na sociedade civil, mas esta
não é a finalidade última da Humanidade. É preciso seguir
adiante. Depois de aperfeiçoar a sociedade civil, concretizando o
soberano bem político ou constituição civil perfeita (liberdade e
paz), precisa de realizar o soberano
bem ético,
ou seja, a construção de uma sociedade ética, racional.
Senão,
vejamos. Naturalmente, o homem possui uma socialidade insociável.
Enquanto ser racional é social, convive com seus semelhantes, mas ao
mesmo tempo é dotado de uma insocialidade (Ungesellikeit),
pois é dotado de instintos, disposições, de inclinações
irracionais, é atraído pelo mundo sensível, apegado aos bens
materiais (cf. Kant –
Ideia de
uma história...
Quarta Proposição). Por isso, vive em estado de primitivismo, de
conflitos, de guerras. É um dever ético, racional, sair desse
estado de minoridade para uma vida de maioridade, guiada pela razão
(cf. Kant – Resposta
à pergunta: que é
Esclarecimento,
p. 100, passim,
1974).
Em
princípio, no estado de natureza, o homem vivia constantemente em
conflito com seus semelhantes, mas, ao mesmo tempo, em
sociedade. Ao saltar para a sociedade civil deu um passo rumo ao
progresso, à razão. Mas qual foi o móvel que o fez progredir? Qual
o sujeito da História, aquilo que move os homens no progresso para
melhor? Kant afiança que a natureza, por si mesma, possui uma
astúcia (List)
que faz com que os homens procurem a concórdia através da
discórdia. Na Quarta Proposição de sua “Ideia de uma história
universal de um ponto de vista cosmopolita”, Kant declara que
“O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento
de todas as suas [do homem] disposições é o antagonismo
das mesmas na sociedade, na medida em que ele [antagonismo] se torna
ao fim a causa de uma ordem regulada por leis desta sociedade.
Eu entendo aqui por antagonismo a insociável
sociabilidade
[ungesellige
Geselligkeit] dos
homens” (Kant, Ideia...,
p. 13, 1986). Quer dizer, o instinto natural dos homens faz com que
eles entrem em conflitos, na defesa de seus interesses e esses
conflitos podem crescer, se desenvolverem e até chegar a
proporções gigantescas, como a guerra entre países. Mas para que a
natureza faz isso, por que induz os homens ao conflito? Para que os
homens sejam estimulados a usar a razão, a aprenderam que não
é o conflito, a
guerra , que leva o indivíduo à sua sobrevivência, à sua
humanidade, ao seu destino, à uma sociedade justa, ética - mas sim
a razão.
Esta, sim, é que deveria ser, desde o início, o móvel, o sujeito
da História, o guia da Humanidade, na busca de seu
aperfeiçoamento moral, na realização de uma sociedade ética, onde
coincidiriam todos os fins humanos ( Reino dos Fins, Reino de
Deus).
Algumas
passagens dessa obra de Kant servem para documentar sua posição:
Como o filósofo não pode pressupor nos homens e seus jogos, tomados em seu conjunto, nenhum propósito racional próprio, ele não tem outra saída senão tentar descobrir, neste curso absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza que possibilite todavia uma história segundo um determinado plano da natureza para criaturas que procedem sem um plano próprio. Nós queremos ver se conseguimos encontrar um fio condutor para tal história e deixar ao encargo da natureza gerar o homem que esteja em condição de escrevê-la segundo esse fio condutor. (Kant, Ideia..., p. 10, 1986).
E,
na mesma página, Kant ainda expõe:
Os homens, enquanto indivíduos, e mesmo povos inteiros mal se dão conta de que, enquanto perseguem propósitos particulares, cada qual buscando seu próprio proveito e frequentemente uns contra os outros, seguem inadvertidamente, como um fio condutor, o propósito da natureza, que lhes é desconhecido, e trabalham para sua realização, e, mesmo que conhecessem tal propósito, pouco lhes importaria. (Ibd.)
E,
em sua obra sobre À
Paz Perpétua (op.
cit., p. 53, 1989), Kant assevera que pela natureza “o homem é
coagido a ser, embora não um homem moralmente bom, contudo, um bom
cidadão”. E, por fim (p. 54), garante que “a natureza quer
irresistivelmente que o direito, por fim, tenha o poder
supremo”.
Ao
deixar o estado de natureza, ao “abdicar de sua liberdade brutal e
buscar tranquilidade e segurança numa constituição conforme leis”
(Kant, Ideia...,
Sétima Proposição, p. 17, 1986) por uma exigência ética (embora
permaneça na sociedade civil os direitos adquiridos no estado
de natureza, a mudança de um estado para o outro é
qualitativa, racional, e não um mero progresso empírico), o homem
passa para a sociedade civil. Porém esta não é o destino final do
homem; ele precisa progredir no sentido de alcançar o bem
político supremo,
isto é, a sociedade política perfeita ou constituição perfeita.
Evidentemente, esta sociedade política perfeita é uma ideia da
razão. Compreenda-se por sociedade política perfeita, por
definição, a sociedade em que foram conquistados os direitos de
expressão (liberdade de pensamento) e a paz perpétua, sob um regime
republicano. O Primeiro Artigo Definitivo para a Paz Perpétua
reza claramente que “A constituição civil em cada Estado deve ser
republicana” (Kant, À
paz..., p. 33).
Por
paz perpétua
não se deve entender a paz dos mortos no cemitério (embora Kant
tenha se inspirado na paz dos cemitérios para intitular sua obra),
mas uma paz permanente entre os vários Estados da Terra. Em nosso
planeta, os Estados vivem em estado de guerra, conflitando uns contra
os outros, tais como, em Hobbes, os indivíduos viviam em guerra
entre si. Ora, enquanto esse estado de beligerância real ou possível
permanecer, a Humanidade viverá em perigo. E uma paz momentânea
será apenas um armistício8.
Será necessária uma instância jurídica acima dos Estados
particulares para lutar por uma paz duradoura. Kant então
sugere criação de uma Liga
dos povos9
para se encarregar dessa paz perpétua. Evidentemente que essa paz é
apenas uma ideia da razão, pois no mundo empírico, muitos desvios
podem acontecer. Mas é um ideal pelo qual todos os homens de
boa vontade devem lutar.
Este
soberano bem
político
(liberdade e paz) deve ser uma conquista necessária, pois sem
ela não será possível avançar para a realização de uma
sociedade racional, ética, que será a suprema conquista do
homem sobre a terra.
3.0
- A
SOCIEDADE ÉTICA E O
FIM-TÉRMINO DO HOMEM
Cada
homem, ao lutar por sua existência, procura estabelecer uma
finalidade para sua vida. Cada um procura realizar seu objetivo, seu
fim ou fins. Cada homem, por si, deseja realizar seus sonhos, seus
ideais. Mas como os homens nem sempre agem racionalmente, os fins de
cada um ou de alguns acabam conflitando com os fins de outro ou de
outros. Se todos os homens agissem racionalmente, esses fins não se
conflitariam entre si e os homens facilmente alcançariam seus
objetivos particulares, em consonância com os objetivos gerais. Mas
nem sempre esse é o caso. Por isso, o dever moral obriga o homem a
agir racionalmente, de modo que sua conduta particular seja
compatível com a conduta universal (conforme já dizia o imperativo
categórico) a fim de alcançar o mundo inteligível, um mundo
racional. Quer dizer, o homem, em sua vida cotidiana, pode roubar
galinhas, caluniar, mentir etc., mas não deve querer que isso
seja uma conduta moral, legítima, não deve pretender que tais atos
possam se transformar numa lei universal, porque isso levaria à
desagregação da sociedade, ao caos, à ruína, ao
irracionalismo. De fato, empiricamente, pode-se errar, mentir, mas
não pretender, racionalmente, que o erro ou a mentira seja moral ou
juridicamente correto. O erro (moral ou jurídico) não gera
direito, gera correção ou punição, se tal ocorrer numa
sociedade justa.
Pois
bem, o conjunto de todos esses fins que cada homem propõe para si
mesmo constitui, segundo Kant, o “Reino dos Fins”. No final
de sua obra “Fundamentação da metafísica dos costumes”,
Kant fala sobre o reino dos fins nos seguintes termos:
De resto a ideia de um mundo inteligível puro, como o conjunto de todas as inteligências, ao qual pertencemos nós mesmos como seres racionais (posto que, por outro lado, sejamos ao mesmo tempo membros do mundo sensível), continua a ser um Idea utilizável e lícita em vista de uma crença racional, ainda que todo o saber acabe na fronteira deste mundo, para, por meio do magnífico ideal de um reino universal dos fins em si mesmos (dos seres racionais), ao qual podemos pertencer como membros logo que nos conduzamos cuidadosamente segundo máximas da liberdade como se elas fossem leis da natureza, produzir em nós um vivo interesse pela lei moral. (p. 116, 1986).
Quer
dizer, o reino dos fins só poderia ocorrer numa sociedade ética,
que seria construída após a conquista da sociedade política
perfeita ou constituição civil perfeita.
3.1-
A EXTINÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO
Uma
sociedade que alcance o seu objetivo ético, não precisaria de
Estado e, portanto, de Direito. É verdade que jamais uma sociedade
seria totalmente perfeita, pois enquanto o homem estiver sob o
domínio do mundo sensível, estará sujeito a desvios e erros, de
modo que essa sociedade ética é uma ideia
da razão, uma
ideia regulativa da razão prática (moral) e orientativa da
razão teórica pura (pois nos induz a ver o mundo como totalidade,
como sistema, tendo como princípio orientador e sistematizador
de tudo – Deus).
Mas
mesmo sendo uma ideia da razão, é moralmente necessária, pois nos
guia no rumo da perfeição moral. Mesmo que não possamos alcançar
a perfeição absoluta, devemos tentar, buscar, a cada momento, essa
perfeição. É conhecida a máxima de Kant: se
devo, posso.
Kant
assegura que numa sociedade ética, as ações dos homens seriam
livres e jamais deveria haver coação. Portanto, as normas jurídicas
seriam eliminadas e o Estado, que as garantiriam, seria inútil
e, logo, extinto. Em outras palavras, Estado e Direitos seriam
meios
e não fins.
Meios a serviço da Humanidade em sua caminhada pelo seu
aperfeiçoamento moral, pela realização da sociedade ética ou
reino de Deus sobre a terra.
Como
se nota, é comum esta posição (contrária ao Estado) tanto em Kant
como em Marx - como nos anarquistas. Mas o Estado, no atual momento
histórico, certamente é um mal necessário.
3.2
– A ABOLIÇÃO DAS RELIGIÕES ESTATUTÁRIAS OU POSITIVAS; EXISTE
APENAS UMA ÚNICA RELIGIÃO, QUE É INVISÍVEL
As
religiões positivas, tais como as vemos hoje, numa sociedade ética
também seriam extintas. Não existiriam cultos, missas, rituais,
aparatos, sacerdotes ou pastores, pitonisas, livros sagrados ou
qualquer ato cerimonial. A religião verdadeira é única para
todos os homens e os mandamentos divinos seriam leis morais enviados
por Deus diretamente para cada indivíduo, sem necessidade de
intermediações, cerimônias ou rituais. Não é que Kant seja
contra tais coisas. Apenas diz que elas, atualmente, tem apenas
um valor educativo, mas numa sociedade ética (racional), tais
recursos não seriam mais necessários. Do meu livro sobre Kant estou
pinçando a seguinte passagem, que condensa muito do que foi
dito acima:
Esta sociedade ética ou Igreja Invisível ou Reino de Deus é comparada a uma sociedade familiar ou comuna [cf. Kant – La Religión..., Terceira Parte, p. 98, 1986] Nela não haverá sacerdotes ou funcionários da Igreja, pois Deus é seu legislador, e cada membros receberá as leis morais imediatamente de Deus. Kant diz que a única coisa que Deus pede ao homem para lhe agradar é seu bom comportamento, isto é, a prática da virtude. Mas o homem não se contenta com isso e, ainda que sabendo que só pode influir sobre outros seres do mundo e não em Deus, mesmo assim pensa que pode honrar e venerar ao Senhor através de atos estatutários, e cria assim as Igrejas Eclesiais. Porque pensa que […]
[…] todo gran señor del mundo tiene uma particular necesidad de ser honrado por sus súditos y ensalzado [exaltado] mediante pruebas de sumisión como necesita para poder dominarlos, y además el hombre, por razonable que sea, encuentra siempre em lãs demonstraciones de honor um placer inmediato, por eso se trata el deber, em tanto que es a la vez mandamiento divino, como gestión de un asunto de Dios, y así surge en concepto de una Religión del servicio [culto] de Dios en vez del concepto de una Religión moral pura (Kant – La Religión, Terceira Parte, op. cit., p. 104, 1986).
Mas
as Igrejas Visíveis, estatutárias, com base em leis reveladas,
tradicionais, históricas, devem ter seus fundamentos nas leis
da Igreja Invisível, sob pena de serem falsas. A fé nelas é uma fé
histórica e não uma fé religiosa racional. Isto é, elas devem
poder ser reduzidas à Igreja Natural (racional, invisível), mas
Kant diz que a única que pode ser, no final, confundida com a Igreja
Racional é a Igreja Cristã” (Sousa, p. 224, 2012).
Isto
significa dizer que – segundo Kant - embora outras religiões
possuam em sua doutrina muitos elementos compatíveis com a Igreja
Invisível, o Cristianismo é a que mais se aproxima dessa igreja
inteligível, ideal.
3.3
– O SOBERANO BEM FINAL: O CASAMENTO DA VIRTUDE COM A FELICIDADE
Como
vimos anteriormente, o soberano bem político da Humanidade é a
liberdade civil e a paz perpétua. Mas este soberano bem não é
o bem supremo do homem. O bem supremo, o bem final, o fim-término
(Endzweck)
é a junção da virtude com a felicidade. No mundo terreno, o homem
deve priorizar a virtude e não a felicidade, embora seja um dever
moral lutar pela felicidade própria e a dos outros. Por virtude
deve-se entender a firme disposição de cumprir o dever (moral). Por
felicidade compreende-se a satisfação de todas as nossas
necessidades. Como isso é impossível no mundo empírico, devemos ao
menos lutar para conseguir esse ideal (Kant fala ainda de outro tipo
de felicidade, que é a satisfação pessoal com seu próprio
comportamento, pelo seu aperfeiçoamento moral).
Ocorre
que, no mundo empírico, nem sempre a virtude anda de par com a
felicidade e, no caso de conflito entre uma e outra, o homem
deve optar pela virtude, mesmo que isto lhe cause infelicidade. Daí
a moral postular a imortalidade, para que o virtuoso não tenha
vivido em vão. Veja-se que Kant não afirma que não possamos ser
felizes neste mundo ou que a felicidade seja incompatível com a
virtude. Apenas assevera que a felicidade plena
é que não é possível neste mundo sensível e que nem sempre a
virtude anda junto com o nosso bem estar. Mas devemos laborar para
que as duas coisas aconteçam.
Ora,
a sociedade mais propícia para que o homem se realize, se não
plenamente, mas pelo menos o máximo possível é a sociedade
ética. Mas, esta só será exequível depois que o homem tiver
alcançado a sociedade política perfeita. Por sociedade política
perfeita, Kant entende a sociedade que tenha alcançado a liberdade
(de expressão, de locomoção etc) e a paz perpétua. Somente
depois disso será possível lutar pela sociedade ética, onde poderá
ocorrer a realização do “reino dos fins”, quer dizer, o locus
onde todas as finalidades de cada homem possam convergir para uma
sociedade justa e harmônica, onde reine não só a paz e a
liberdade, como também o cumprimento dos mandamentos éticos.
Numa sociedade assim, o homem poderá viver virtuosamente,
condignamente e, desse modo, aspirar à vida eterna.
É
conveniente lembrar que a sociedade ética é apenas uma ideia da
razão. Mas é moralmente um dever de cada um agir para
realizá-la.
4.0
– A REALIZAÇÃO
DO HOMEM
Sobre
a realização do homem, existem duas posições doutrinárias
fundamentais: uma que diz que o ser humano se realiza aqui mesmo no
mundo terrenal e a outra que afirma que sua realização plena só
ocorre no mundo do Além (transcendente).
A
primeira posição seria a dos materialistas e a segunda a dos
idealistas (ou espiritualistas). Veremos ligeiramente o significado
das duas correntes a seguir.
4.1.0
– A REALIZAÇÃO DO HOMEM NO MUNDO TERRENAL (MARX ETC)
Como
representante da corrente ou sistema materialista, escolhemos Karl
Marx. Este pensador alemão, de fama mundial, afirma que o destino do
homem se realiza aqui mesmo, neste mundo, mas para isso seria
necessária acabar com qualquer tipo de sociedade baseada na
exploração do homem, seja ela escravagista, feudalista ou
capitalista. Marx prega a derrubada do regime capitalista e a
construção de uma sociedade comunista para que seja possível a
realização do homem na terra.
Através
de uma revolução seria possível destruir o sistema capitalista.
Mas como as relações de produção e de sociedade (direito burguês)
ainda existiriam mesmo sob a existência de uma sociedade
socialista revolucionária, Marx prega um regime de transição.
Quer dizer, entre a sociedade capitalista derrubada e a existência
de um socialismo pleno (comunismo) ocorreria um período
intermediário, que seria o período da Ditadura do proletariado. No
opúsculo “Crítica do programa de Gotha”, assegura Marx,
textualmente:
Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o período da transformação revolucionária de uma para a outra. A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado.10
Isto
significa que o comunismo (socialismo pleno) não será implantado
abruptamente (de imediato, ocorreria somente a socialização
dos principais meios de produção, como o latifúndio, as
grandes fábricas, o sistema financeiro etc.), mas gradativamente.
Na verdadeira sociedade comunista, o Estado e o Direito seriam
abolidos. O Estado deixaria de ser uma máquina de governar homens,
para ser uma máquina de administrar as coisas. Numa sociedade sem
Estado e sem propriedades privadas, prevaleceria o lema: de cada
um, segundo sua capacidade, a cada um, segundo suas necessidades. Com
a abolição do Estado, não existiria nem sistema
econômico-político de representação nem de cogestão, mas de
autogestão. A sociedade gerenciaria a si mesma e todos viveriam bem.
É por causa da concepção deste tipo de sociedade que os críticos
de Marx o chamam de utópico. Quer dizer, tal comunidade seria uma
Utopia, como a de Tomas Morus, Platão, Campanella, Francis
Bacon etc., evidentemente ressalvando-se as diferenças necessárias.
Em
verdade, Marx não promete felicidade para ninguém, pois esta é de
natureza subjetiva, é algo pessoal de cada um. Aponta apenas
para a melhora nas condições materiais e sociais de existência
como requisitos favoráveis para que cada um possa buscar sua própria
felicidade. Esta seria um tipo de sociedade pregada também pelos
anarquistas, com a diferença que estes não aceitam o período de
transição, a chamada Ditadura do Proletariado. Para o anarquista,
“si hay gobierno, yo soy contra”...
Enfim,
para as sociedades de cunho materialista, a questão da religiosidade
seria um problema de foro íntimo de cada um. Todos seriam
livres para ser ateus ou religiosos. O essencial seria o fim da
exploração do homem pelo homem.
Para
Kant, na sociedade ética ou racional não existiriam forças armadas
ou religiões positivas. Tal como no marxismo, o Estado seria
abolido e, portanto, as normas coativas, em outras palavras, o
Direito estaria também extinto. A sociedade ética seria a
concretização do “Reino dos Fins” ou “Reino de Deus”. Não
haveria templos, sacerdotes ou pastores, hierarquias, templos etc. Os
homens receberiam os mandamentos morais diretamente de Deus e só
haveria uma única religião: a religião invisível, existente
no coração de cada um.
Kant
chega mesmo a dizer que não se deveria pronunciar a palavra
“religião” publicamente, para se referir a qualquer religião
atual, mas sim usar o termo “crença”: crença judaica,
crença islâmica, crença cristã, crença hinduísta etc., pois
religião mesmo só há uma, a invisível, estabelecida por Deus na
consciência de cada homem.
Kant
então assegura que a sociedade ética serve para que o homem seja
feliz na terra; mas aqui, embora possa ser feliz, jamais atingirá a
felicidade plena.
Esta só ocorrerá no mundo inteligível ou noumênico,
isto é, no mundo transcendente11.
Os homens daqui deverão praticar a virtude para serem dignos da
felicidade. Mas como não há garantia de que sejam plenamente
felizes, neste mundo material, é preciso postular a imortalidade da
alma como condição de uma bem-aventurança eterna. Somente no
mundo do Além seria perfeito o casamento da virtude com a felicidade
– e esta seria o soberano bem final – o fim-término (Endzweck)
do ser humano (ver Kant – A
religião nos limites da
simples razão).
5–
CONCLUSÃO
A
título de conclusão, diremos algumas palavras sobre a importância
de ler Kant hoje e futuramente. Se não bastasse sua defesa do
direito de livre expressão e de hospitalidade universal, ele coloca
um valor perene na história da Humanidade: a importância da
ética na política. Na vida prática, os homens, desde que fizeram
política, frequentemente deixavam a ética de lado. Mas foi somente
a partir de Maquiavel (ver O
Príncipe) que a
separação entre ética e política foi defendida numa obra de
grande fôlego, teoricamente.
Maquiavel
declara que aquele que age honestamente no meio de tantos que são
maus, está condenado ao fracasso. E o político não quer fracassar,
mesmo que para vencer tenha que sacrificar a ética: para o político
desalmado, “o feio é perder”. Em Maquiavel, a política se
transformou num mero jogo de poder em que a vitória depende que
quem tem mais força e esperteza.
Ora,
para Kant a finalidade da vida humana na terra é o seu
aperfeiçoamento moral e a política, por consequência, precisa se
submeter a essa ética. E o ideal seria construir uma sociedade
justa, onde não exista a exploração do homem pelo homem – Kant
defende que nenhum homem deve ser tratado como meio – e onde cada
um possa realizar sua liberdade, de par com os seus fins legítimos,
racionais.
O
mundo contemporâneo necessita de justiça, de ética, precisa de
combater qualquer tipo de sociedade que se fundamente na exploração
do homem pelo homem, como a sociedade atual, que existe apenas para a
satisfação de minorias cada vez mais elitistas, e que usam o povo
explorado como massa de manobra para a realização de seus
interesses pessoais.
Por
isso, lutar por uma sociedade justa continua sendo uma exigência
ética, um “postulado da razão”, que deve estar na consciência
de todo homem de bem.
6
– BIBLIOGRAFIA
Indicamos
a seguir algumas obras úteis para um início de estudos sobre Kant.
Como são livros para uma simples introdução à filosofia do
direito, limitamo-nos a enumerar apenas escritos em línguas
portuguesa e espanhola.
Bobbio,
Norberto – Direito e Estado no pensamento de Emmanuel Kant,
Brasília, UnB, 1984.
Ferraz,
Carlos Adriano – Do juízo teleológico como propedêutica
à teologia moral em Kant, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2005.
Herrero,
Francisco Javier – Religião e história em Kant,
São Paulo, Loyola, 1991.
Kant,
Immanuel – Crítica da razão prática, Lisboa, Edições
70, 1999.
Kant,
I. – À paz perpétua, Porto Alegre/São Paulo, L&PM,
1989.
Kant,
I. – Metafísica dos Costumes, Bauru/São Paulo, EDIPRO,
2003.
Kant,
I. – “Textos seletos” (ed. bilíngue, Português e alemão),
Rio de Janeiro, Petrópolis, Vozes, 1974 (contém, dentre outros, o
artigo de Kant – Resposta à pergunta: que é
Esclarecimento?).
Kant,
I. – Crítica da faculdade do juízo, Rio de Janeiro,
Forense, 1993.
Kant,
I. – “Filosofía de la historia”, Buenos Aires, Editorial Nova,
1964.
Kant,
I. – “Filosofía de la história”, México, Fondo de Cultura
Económica, 1997.
Kant,
I.- Fundamentação da metafísica dos costumes, Lisboa,
Edições 70, 2001.
Kant,
I. – Ideia de uma historia universal de um ponto de vista
cosmopolita (ed. bilíngue, português e alemão), São Paulo,
Editora Brasiliense, 1986.
Kant,
I. – La religión dentro de los limites de la razón,
Madrid, Alianza Editorial, 1986.
Kant,
I. – O conflito das faculdades, Lisboa, Edições 70, 1993
(ver especialmente o artigo: Questão renovada: estará o gênero
humano em constante progresso para melhor?).
Kant,
I. – Sobre a pedagogia – Piracicaba, Editora UNIMEP, 2006.
Salgado,
Joaquim Carlos – A ideia de justiça em Kant, Belo
Horizonte, UFMG, 1986.
Sousa,
Noé Martins – A filosofia de Kant – A moral como fio condutor
da articulação do sistema kantiano, Fortaleza, EdUECE,
2012.
Vincent,
Luc – Educação e Liberdade – Kant e Fichte, São
Paulo, UNESP, 1994.
Zingano,
Marco Antônio – Razão e historia em Kant, São Paulo,
Brasiliense, 1989.
Para
citar este documento (ABNT/NBR 6023: 2002):
SOUSA,
Noé Martins: Kant - Estado e Direito: Origem e Evolução. Praxis
Jurídica, Ano II, N.º 02, 13.02.2015 (ISSN 2359-3059). Disponível
em: <http://praxis-juridica.blogspot.com.br/2015/02/kant-estado-e-direito-origem-e-evolucao.html>. Acesso em: .
1A
palavra alemã Aufklärung, em línguas neolatinas, ora é
traduzida por Iluminismo, ora por Esclarecimento, ora por
Ilustração.
2Kant,
na página seguinte (31), explica o que entende por máxima moral:
“Máxima é o princípio subjetivo do querer; o princípio
objetivo (isto é o que serviria também subjetivamente de princípio
prático a todos os seres racionais, se a razão fosse inteiramente
senhora da faculdade de desejar) é a lei prática”.
3Uma
ação é boa ou o que é praticamente bom – diz Kant – é
“aquilo que determina a vontade por meio de representações da
razão, por conseguinte não por causas subjetivas, mas
objetivamente, quer dizer por princípios que são válidos para
todo ser racional como tal” (Fundamentação..., p. 48,
2001).
4Kant,
na obra Fundamentação..., desdobra essa fórmula em mais
duas: 1) não tratar o homem como meio, mas como fim e, 2) agir
sempre de tal modo que a sua vontade possa se tornar uma lei da
natureza. Posteriormente, na KpV, Kant conserva apenas a
fórmula geral, já citada. Daí seus críticos dizerem que sua
moral é puramente formalista.
5Zingano,
em sua tradução de À paz perpétua (p. 60, 1989), traduz
melhor o final da citação acima: “A divindade tutelar da moral
não cede a Júpiter (a divindade tutelar do poder)”. A tradução
francesa de J. Gibelin (Paris, J, Vrin, p. 55, 1947) afirma: “Le
dieu Terme de la morale ne le cède pas à Jupiter (le dieu Terme de
la force)”. No original alemão: “Der Grenzgott der Moral weicht
nicht dem Jupiter (dem Grenzgott der Gewalt)” (in “Textos
seletos”, p. 131, 1974). O verbo “weichen”, além de
significar retroceder, retirar-se, significa também ceder,
que consideramos a tradução mais apropriada.
6Lucien
Goldmann, em sua obra “Origem da dialética – a comunidade
humana e o universo em Kant” (Parte 4, p. 240, passim, Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1967), justifica essa aparente contradição
de Kant, de ser contra a rebelião e ao mesmo tempo apoiar a
Revolução Francesa. Ele argumenta que Kant é contra a rebelião,
mas, uma vez que o povo rebelado tenha se tornado vitorioso, já
será então um governo e, portanto, tem o direito de exigir
obediência dos súditos. Quer dizer, ninguém possui o “direito”
de rebelião. Ou seja, quem quiser rebelar-se, conspirar, burlar a
lei, que o faça por conta e risco próprio. Mas, uma vez
vitoriosos os revolucionários, os vencidos lhes devem obediência.
Cabe aqui o ditado do nosso Machado de Assis: “ao vencedor, as
batatas”.
7Sobre
posse e propriedade em Kant, ver Salgado (p. 300,
1986), in nota.
8Kant
firma, no primeiro artigo preliminar sobre a paz perpétua entre os
Estados, que não deve haver má fé nos tratados de paz: “Não
deve viger nenhum tratado de paz como tal que tenha sido feito com a
reserva secreta de matéria para uma guerra futura”. Alega ele que
“então seria um simples armistício, suspensão das
hostilidades, não paz, que significa o fim de todas as
hostilidades, e atrelar-lhe o adjetivo de perpétua é
já um pleonasmo suspeito” (op. cit., p. 26).
9No
Segundo Artigo Definitivo para a Paz Perpétua (op. cit., p. 38),
Kant afiança: “Povos, como Estados, podem ser julgados como
homens individuais, que em seu estado de natureza (isto é, na
independência das leis exteriores) já se lesam por seu
estar-um-ao-lado-do-outro e do qual cada um, em vista de sua
segurança, pode e deve exigir do outro entrar com ele em uma
constituição similar à civil, em que cada um pode ficar seguro de
seu direito. Isto seria uma liga dos povos”. Depois da
Primeira Guerra Mundial, para defender a paz e o direitos dos povos,
foi criada a Liga das Nações que, ao fracassar por não ter
conseguido evitar a Segunda Guerra Mundial etc., foi extinta. Depois
desta, foi criada a Organização das nações Unidas (ONU),
que, como a primeira organização, tem sido apenas uma Ideia
Regulativa da Razão...
10Marx
/Engels – Werke,
45 Bänden (volumes), Institut für Marxismus-Leninismus beim
ZK der SED,
Dietz Verlag Berlin, 1982-1989. Utilizamos
o volume 29, p. 28. A obra “Kritik des Gother Programms”
está nas páginas 11-32.
11É
preciso lembrar que, em Kant, transcendental não é o mesmo que
transcendente. Transcendental são as formas a priori
(categorias e espaço-tempo) que entram na composição do
conhecimento, ordenando o mundo sensível (ver KrV); e
transcendente é o mundo noumênico, o mundo da coisa-em-si,
o mundo suprassensível, o mundo da imortalidade da alma, o mundo do
Além, o mundo de Deus, enfim.
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