Sandro Botticelli, 1483: Vênus e Marte. |
e
seus desdobramentos modernos
Yure
Cézar de Moura Almeida
(Filósofo)
Resumo.
Este artigo se foca em um aspecto específico de um dos livros de Arendt. Neste artigo, temos uma análise dos principais pontos do tópico “crise na educação”, do livro Entre Passado e Futuro, visando compará-lo com a situação educacional atual no Brasil.
Aqui, é
feito um apanhado do ponto de vista da filósofa sobre como a
educação deveria ser para salvaguardar a integridade da criança
antes de estar pronta para a vida adulta. Além disso, também é
feito aqui uma reflexão sobre como a crise afetou a educação e de
como a configuração da crise remonta às ideologias americanas.
Porém, não é um artigo sobre política e de como ela afeta a
educação. Este artigo procura as razões mais pessoais por trás do
texto de Arendt, para mostrar como o problema na educação não é
culpa exclusivamente do Estado.
Palavras-chave:
Arendt, educação, crise, política.
Abstract.
This article focuses on a specific aspect of one of Arendt's books. In this article, we have an analysis of the main points in the topic “crisis in education”, from the book Between Past and Future.
Here,
we try to make a collection of the philosopher's views on how the
education should be to keep the child's integrity safe before the
child is ready to start an adult life. Plus, a reflection over how
the education went into crisis and how the crisis' configuration can
be backtraced to the American ideologies is also done. However, this
isn't an article about politics and how it affects the education.
This article looks for more personal reasons behind Arendt's text, to
show that the problem in education isn't something to be blamed
solely on the State.
Keywords:
Arendt, education, crisis, politics.
Introdução.
A educação
não é exatamente estável hoje. Apesar de a educação ter passado
por momentos piores, já ter sido caótica e também muito mais
elitista, já faz algum tempo que nós temos a impressão de que
nosso ensino está avançando na direção certa e já mostrando
resultados, mesmo que modestos, mesmo que ainda haja trabalho a ser
feito. Na verdade, não é bem isso o que acontece. O que acontece é
que hoje nós temos um inculcamento de uma ideologia que forma para o
sistema, o que é apenas natural, considerando que a escola é um
organismo inserido na sociedade e, como tal, acaba trabalhando para
seu perpetuação. A situação parece melhor do que na verdade é
porque a educação é conformista.
Então,
embora nossa educação certamente esteja “boa”, ainda lhe falta
o elemento libertário, que sempre escapou das paredes da escola e
sempre foi sua maior ambição. A educação que forma para a vida e
não simplesmente para o sistema seria aquilo que os professores bem
intencionados mais almejam, mas é uma esperança que ainda é
frustrada pelas demandas do sistema capitalista que ativamente
boicota os esforços de professores sinceros em formar livres
pensadores.
Se nossa
educação é vista com olhos otimistas, foi à custa de críticas
feitas no passado sobre uma educação ainda pior. De fato, é sobre
críticas que se forma aquilo que hoje nós vemos como “avançado”,
uma vez que não se pode criar o novo sem apontar o que falta ao
velho. Neste documento, procuro enunciar algumas críticas feitas por
Hannah Arendt contra a educação de seu tempo e seu terreno (Estados
Unidos, século vinte). São críticas ainda muito atuais, pois
alguns dos problemas que ela aponta não foram devidamente adereçados
e provavelmente não o serão num futuro próximo, mas estão aí
para orientar nossa educação atual para o rumo devido.
Como base,
este texto utiliza a quinta parte, “a crise na educação”1,
do livro Entre o Passado e o Futuro. Porém, em vez de se ater aos
aspectos políticos, procuro dar mais ênfase aos aspectos
existenciais e psicológicos, recorrendo à política quando
necessário apenas. Isso porque a política do tempo e do terreno de
Arendt não é como a nossa política, hodierna e brasileira, o que
faz com que alguns pontos do seu texto não nos sejam relevantes.
Na primeira
parte, por que educar, examinamos
o ponto de vista de Arendt acerca da razão de ser na educação e de
como ela acontece. Depois, em por que a crise afetou a
educação, procuramos saber o
que levou a educação que Arendt observava à crise sobre a qual ela
discorre. Também delineamos as características da crise. Por
último, o que fazer frente à crise.
Por que educar?
Woman and Child in a Boat, by Edmund Charles Tarbell (1862-1938). |
Por que
mesmo devemos educar as pessoas? O que levou o ser humano a ensinar
coisas aos seus filhos? Não seria simples a resposta? Nós educamos
porque o mundo está posto ali já antes de nosso nascimento. Esse é
um mundo estranho que tem que ser explicado.
O mundo no qual são introduzidas as crianças […] é um mundo velho […], construído pelos vivos e pelos mortos.2
Ele tem seus
próprios processos de ação e suas regras são complexas na mesma
medida em que ele é velho. Nós estamos em um constante processo de
descobrimento dessas regras, das regras de funcionamento do mundo
natural, mas nós também criamos nossas próprias regras, as regras
do mundo social. São regras difíceis, por vezes contraintuitivas,
sem as quais não podemos sobreviver. A inobservância dessas regras
torna a vida neste mundo difícil, penosa, e indigna. Cada nova
descoberta, acordo, técnica e até mesmo moda que substitui o que é
velho faz com que aqueles que não aderem à mudança se tornem
obsoletos, indesejáveis. E o ser humano não é capaz de viver
sozinho no mundo. Seu poder vem da maioria, da socialização. Então,
pertencer à sociedade, participar em seus avanços e usufruir da
observância das regras do “jogo da vida”, que se desenrola na
arena do mundo, é necessário para a sobrevivência não apenas do
indivíduo, mas de toda espécie humana. Talvez isso fosse razão
suficiente: educamos para ensinar como o mundo funciona, como ele é,
de forma que as crianças desenvolvam sua forma de viver da melhor
maneira possível. E os recém-chegados ao mundo, as crianças, não
sabem dessas regras ainda e precisam de um lugar onde possam
aprendê-las. Por isso, Arendt afirma que:
[…] a essência na educação é a natalidade.3
Para Arendt,
a educação começa, em primeiro lugar, em casa, mas não como
letramento. Em casa, a criança, na sua vida privada, é preparada
pelos pais, de forma segura, para aquilo que depois seria a ponte
entre vida privada e vida pública: a escola. Em casa, a criança se
desenvolve, se conhece e se torna ciente de suas capacidades físicas
e mentais, através, por exemplo, do jogo. É como uma planta, que
está crescendo e precisa ser nutrida pelos pais. Ela aprende de
forma orgânica, natural, coisas como falar o idioma materno e as
primeiras regras de comportamento, que são absorvidas pela imitação.
Em outras palavras, os pais são as primeiras figuras de autoridade
que a criança conhece. Assim, há uma relação de autoridade e
responsabilidade entre pai e filho.4
Para
proteger a criança, a vida privada precisa ser protegida também.
Para Arendt, a criança não deve ser exposta ao mundo, isto é, à
vida pública, sem antes estar devidamente preparada. A vida pública
seria caracterizada pela política e, no contexto americano, pela
igualdade. Só que, quando há igualdade, não há autoridade, que é
requisito para uma formação devida. Então, antes que a criança
possa entrar em contato com a política, com a igualdade e com a vida
pública, ela precisa ser antes preparada na escola e, antes de ir
para a escola, precisa ser preparada na família.
Para Arendt,
a escola é uma ponte. Ela faz uma ligação entre vida privada,
família, e vida pública, o mundo, sem, ao mesmo tempo, ser o mundo
ou a família. A escola prepara a criança para entrar no mundo dos
adultos, sendo uma etapa necessária para sua emancipação.
É
importante ressaltar que a escola não necessariamente é a
instituição a qual estamos acostumados. Existem diferentes tipos de
escola em diferentes tipos de sociedade. A escola pode ser a igreja,
pode ser o lar, pode ser o convívio. Ela não necessariamente é um
instituto especializado. Funciona como escola qualquer etapa
intermediária, preparatória, entre família e mundo. Essa mudança
de um extremo para outro é feita de forma gradual. Idealmente, a
formação da criança, além de prepará-la para o mundo, deveria
também prepará-la para mudá-lo. E de fato...
[…] estamos sempre educando para um mundo que ou já está fora dos eixos ou para aí caminha […].5
Colocamos em nossas crianças nossas esperanças de manter o progresso do mundo.
Resumindo.
Para Arendt,
a educação ideal começa na família, com a preparação da
criança, num meio privado, para a escola. A criança precisa ser
protegida da vida pública, porque não está pronta ainda, até que
ela esteja amadurecida o bastante para ser-lhe apresentada aos poucos
através da escola, que faz assim a ponte entre família e mundo. A
criança não deve lidar com política e deve estar submetida à
autoridade dos pais.
A autoridade
é necessária à educação, o que também implica a
responsabilidade por parte da figura de autoridade, que também é o
professor, quando ela chega à escola. Assim, há uma dialética
entre autoridade sobre o filho e também dever por sua segurança e
formação devida, enquanto ele está nesse meio privado. Quando o
filho está maduro o bastante, deve ir para a escola.
Na escola, a
criança é preparada para o mundo dos adultos, ao qual deve
ingressar quando estiver devidamente pronta.
Por que a crise afetou a educação?
Fonte: Internet. |
Arendt
estava inserida num contexto norte-americano. Como todo filósofo
tende a interpretar a realidade que o cerca, ela falou dos Estados
Unidos. Porém, ela não é tão atual ao dizer que a crise na
educação nos Estados Unidos é algo que era devido à
peculiaridades do estilo de vida de lá. Essas coisas não são
peculiaridades, ao menos não mais. Com a gradual americanização do
mundo, a crise norte-americana se repete, quase tal e qual, em outros
lugares, incluindo no Brasil. Como será visto, a adoção de alguns
paradigmas ideológicos estadunidenses pelo resto do mundo põe em
questão alguns princípios basilares que foram discutidos na seção
anterior e que são indispensáveis ao correto desenvolvimento da
criança.
Que
paradigmas? Os paradigmas de repúdio à autoridade e de esforço
desenfreado pela igualdade. Isso porque o contexto de Arendt veio
logo após o nazismo, no qual a imagem da autoridade foi manchada
pelo autoritarismo. Isso gerou uma crise que afeta vários campos,
mas falaremos apenas da educação aqui.
Nós temos
hoje uma série de preconceitos sobre a vida pública e a vida
privada. Isso não é fonte de problemas apenas educacionais, mas
também psicológicos. A vida pública é glorificada como algo ao
qual todos temos que entrar tão cedo quanto possível, ao passo que
a vida privada é vista como uma oportunidade do ser humano de se
render aos seus impulsos reprováveis. Existe uma pressão pelo fim
da vida privada, uma pressão para que você aja do mesmo modo em
público e em casa. Dá para ver, de imediato, por que isso é algo
nefasto.
Por “fim
da vida privada”, me refiro à pressão para que seu comportamento
seja “genérico”, seja o mesmo em diferentes situações. Ao
mesmo tempo, é requerido que você despenda cada vez mais tempo fora
de casa, trabalhando, se socializando, interagindo. As pessoas
desenvolveram um preconceito com a vida privada, como se ela não
fosse produtiva. Isso também tem origens no pragmatismo americano.
Na vida pública, você produz mais, então deveria passar menos
tempo em casa, onde você não produz.
A vida
pública americana é um local de igualdade. Nesse lugar, todos somos
iguais, ou, pelo menos, é o que se prega. É um lugar no qual nós
somos livres para falar, pensar e agir, uma liberdade que foi o lema
do século passado. Operários e mulheres foram livres dos grilhões
dos senhores e dos maridos, conquistando condições melhores de vida
e de escolha. Mas essa é uma liberdade que não deveria se estender
aos filhos.
Aquilo mesmo que significara uma verdadeira libertação para trabalhadores e mulheres […] constituiu abandono e traição no caso das crianças […].6
Os filhos
passaram a reivindicar para si uma igualdade impraticável entre
adultos e crianças, criando suas próprias microentidades com suas
próprias leis, onde podem buscar amparo quando elas têm suas
aspirações de igualdade ultrajadas pela autoridade dos adultos.
Isso põe em
questão a autoridade que é necessária para ensinar. Além disso, a
autoridade teve sua imagem manchada por abusos cometidos no passado.
Os pais educados pela igualdade talvez se sintam mal em exercer
autoridade sobre os filhos e acabam os deixando se desenvolver como
lhes apraz, mas isso não é apenas um problema ideológico, tendo
também sua faceta mesquinha: renegar a autoridade é renegar também
a responsabilidade, se assumimos que são conceitos indissociáveis.
Os filhos crescem repudiando a autoridade e os pais desta geração
são, em geral, pais irresponsáveis. A crise na educação tem
também raízes na crise que afeta a família. Talvez falar de
autoridade com tanta convicção e até paixão soe um tanto
antidemocrático, mas a obediência a quem pode comandar melhor é
sempre uma atitude sensata.
Como a
família está falhando, cabe à escola algumas das tarefas que
deveriam ser dos pais. Daí a demanda por escolas de tempo integral,
já que os pais não querem ou não podem cuidar dos filhos como
deveriam e despendem tempo demais trabalhando, normalmente porque o
sistema capitalista os pressiona para isso. Afinal, é requisitado
cada vez mais trabalho de nossa parte para manter nosso nível de
conforto. E isso tem implicações no funcionamento da escola. O
currículo teria que ser ajustado, o ambiente da escola teria que ser
mudado e a escola, que não deveria ser nem família nem mundo, acaba
perdendo seu caráter frente aos alunos, pois se torna uma extensão
da casa. A mudança no currículo escolar ocorre de forma análoga à
mudança no currículo universitário no contexto de Arendt, onde não
havia ensino médio.7
Tendo que
ser família e escola, a escola perde o foco naquilo que realmente
deveria estar ensinando, ocasionando um ensino inferior. É
importante levar em conta que esse problema é amenizado nas escolas
de tempo integral, por razões evidentes.
Outro
problema é a tendência moderna de manter as crianças como
crianças. “Aprender brincando” é um lema muito ouvido
recentemente, mas isso tem seus efeitos negativos sobre o
desenvolvimento da maturidade da criança.8
A criança passa a ter dificuldade em saber quando deve parar de
brincar e quando deve começar a ser séria, pois as duas coisas
estão mescladas. Isso é especialmente frustrante para a criança
mais velha ou o adolescente, que já rejeitam as brincadeiras tolas
das crianças mais novas e acabam tendo que brincar com elas em nome
da ideologia de igualdade que permeia a educação.
Ao discutir
que a quantidade de alunos que não sabem ler nos Estados Unidos é
maior que em todos os países da Europa, Arendt diz que isso se dá
pela corrida dos Estados Unidos em ser uma “nova ordem mundial”,
em ter tudo novo, incluindo métodos de ensino. Os métodos
norte-americanos são experimentais (ou, pelo menos, eram na época
em que Arendt escreveu o livro) e têm que ser pautados nessas
ideologias de liberdade e igualdade democráticas. Esses métodos são
ainda imaturos e atacam aquilo que a Europa já sabe que dá certo. O
método europeu funciona bem, mas por que ele não é aceito nos
Estados Unidos? Simplesmente por se fundar em uma ideologia
incompatível.
O que é intentado na Inglaterra é a “meritocracia”, que é obviamente mais uma oligarquia, dessa vez não de riqueza ou de nascimento, mas de talento. […] A meritocracia contradiz, tanto quanto qualquer outra oligarquia, o princípio da igualdade que rege uma democracia igualitária. Assim, o que torna a crise educacional na América tão […] aguda é o temperamento político do país, que espontaneamente peleja para igualar […] jovens e velhos, […] dotados e pouco dotados, […] crianças e adultos e […] alunos e professores.9
É o fim da
autoridade. Mas é justamente isso que querem os Estados Unidos. Uma
educação internamente igualitária, onde professores não valem
mais que seus alunos em hierarquia.
Um forte
golpe sobre a autoridade do professor foi uma reforma na pedagogia
que permitiu que professores que não conhecem bem a matéria que
devem passar fossem admitidos no ofício, com o pretexto de termos
“professores aprendentes”, que aprendem a matéria durante o
ofício. Só que isso tira do professor aquilo que mais lhe dá
autoridade, que é a crença de que ele sabe mais que os alunos. Se
ele sabe tanto quanto os alunos em determinado assunto, por que os
alunos o devem ver como professor mesmo?10
Como a
autoridade do professor europeu está bem estabelecida, seus
ensinamentos são levados mais em conta pelos alunos, são mais
admiráveis, são mais difíceis de ser contestados (o que é uma
faca de dois gumes), são melhor aceitos. E, como responsabilidade e
autoridade andam juntas, o professor tende a ser mais responsável
pelos seus alunos, zelando pelo seu crescimento. E crescimento é
algo tido em alta conta pelos próprios alunos, porque, numa
meritocracia, quem mais estuda e mais sabe, mais pode. Num sistema
igualitário, tanto faz eu estudar ou não.
Resumindo.
A crise na
educação é também uma crise na família e uma crise na política.
Da política porque existe agora uma demanda por igualdade e
liberdade para todos, ao menos aqui na América e nos países sob
influência dos Estados Unidos. Da família porque temos uma pressão
para acabar com a vida privada, onde a criança deveria se
desenvolver, ao passo que os pais não querem ou não podem mais
assumir responsabilidade integral pelos filhos, relegando a
autoridade aos professores. Afinal, é na vida privada onde se criam
os filhos e os pais são constantemente afastados dela.
As crianças
acabam sendo levadas à escola cada vez mais cedo, às vezes em tempo
integral, sobrecarregando a escola, que perde seu caráter.
O que fazer frente a crise?
Palmer Island Lighthouse, New Bedford, Massachusetts - Photo by John Souza. |
Desconstruindo
a seção anterior, nós temos os seguintes pontos fracos apontados
por Arendt no ensino:
-
Absorção de uma educação igualitária, sem autoridade, nem de professores, nem de pais. As figuras de autoridade estão relegando seu poder à outras figuras.
-
Falta de responsabilidade por parte dos pais (crise da família). Os pais passam menos tempo com os filhos, não querendo fazer mais esforço que o mínimo possível para seu desenvolvimento, principalmente por haver pressão para o trabalho.
-
Ausência de benefícios por aprender. Os alunos não veem vantagem em aprender.
-
Sobrecarga da escola com coisas triviais que deveriam ser tratadas na família. A escola perde aos poucos seu caráter preparatório e passa a ser vista como extensão à família.
Em primeiro
lugar, é necessário trazer de volta a autoridade dos pais e
professores. Isso não é fácil por razões ideológicas. Os pais
desta geração foram educados pela igualdade e talvez não saibam
como lidar com uma situação na qual eles são imbuídos de
autoridade. Os mais fracos se limitam a amparar o filho quando algo
dá errado, mas isso é ruim em duas vias.
Primeiro
porque fomentam a rebelião do filho, que se junta com outros de sua
idade na formação de grupinhos. E é aí que está o inferno.
[…] ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a tirania da maioria. […] A reação das crianças a essa pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil, e frequentemente é uma mistura de ambos.11
A criança
não está pronta para a vida pública e ingressar num grupo de
iguais é lidar com o mundo público, com um sistema político
chamado democracia. Se ela não sabe se expressar, pode sentir-se
frustrada por ter sugestões genuinamente boas rejeitadas por uma
maioria ignorante e ela não poderá fazer nada. Talvez nem sequer
voltar à família privada por vergonha de admitir seu erro aos
adultos. Os grupos de pessoas que não foram educadas pelos pais não
favorece a prática do controle ordeiro das emoções (essa é uma
das coisas que não deveria ser ensinada na escola, mas em casa, e os
conflitos entre alunos na escola seriam melhor controlados se os
filhos trouxessem educação emocional de casa) e não pode subsistir
por muito tempo, descendendo ao caos.
A segunda
via é a de que, deixando o filho agir como quiser, mas amparando-o
quando seus planos dão errado, o pai está impedindo o filho de
sentir as consequências de seus atos, o que prejudica seu
julgamento.
Não podendo
ser educada em casa, a criança não estará pronta para a escola, na
qual provavelmente encontrará a mesma situação. Os professores ou
não podem ter autoridade ou não querem assumir responsabilidade.
Eles querem manter as crianças como crianças. Como a escola também
é um dispositivo ideológico do Estado, talvez os professores
prefiram doutriná-las,12
mas até isso pode ser difícil, se os jovens que receberão a
doutrina não reconhecerem autoridade no professor. Especialmente se
o professor de matemática for apenas pedagogo.
E isso não
é perigoso apenas no âmbito escolar em geral, mas dentro da sala de
aula, quando o pedagogo se mostra incapaz de responder perguntas
específicas feitas por alunos interessados e ou os desaponta ou
mente. Isso também acontece quando, por falta de professores,
mestres de outras matérias acabam sendo chamados para ensinar
assuntos que não dominam. Por vezes, o aluno percebe que o professor
comete erros grosseiros em relação à matéria com relativa
frequência ou mesmo muita frequência. Acaba completamente a
autoridade e também o respeito quando o aluno percebe que sabe mais
que o professor, porque fica a impressão de que o professor está se
esforçando para enganar os alunos, fingindo ensinar o que não sabe.
Já na Grécia Antiga se pensava que ser capaz de ensinar algo é um
distintivo de que aquela pessoa conhece o que está ensinando.13
Mas
os pedagogos deixam a desejar no ensino das matérias que deveriam
ensinar. Então instituir pedagogos para ensinar
algo que não aprenderam é um retrocesso milenar.
Agora, o
próximo problema: os pais não querem ou não podem assumir
responsabilidade sobre os filhos. Isso tem raízes no sistema
capitalista. Dependendo da condição da política, temos que
trabalhar mais ou menos para mantermos nosso nível de vida. Se temos
de trabalhar mais, não podemos tomar devida conta de nossos filhos,
entregando-os aos outros. Mas a autoridade que é necessária para o
desenvolvimento da criança se desenvolve com convivência. Como a
criança reconhecerá a autoridade de uma pessoa que passa pouco
tempo com ela, na vida privada que é a família? Se temos de
trabalhar menos, nem por isso queremos despender mais tempo com os
filhos, posto que não temos costume de fazer isso.
Esse é
talvez o ponto mais difícil de resolver, porque não bastaria uma
reforma política, mas também uma mudança de comportamento nos
pais. Não basta assumir autoridade, mas também responsabilidade e
autoridade sem responsabilidade é autoritarismo.
Num sistema
igualitário, em contraste com a meritocracia europeia, aqueles que
estudam e se esforçam não são devidamente recompensados. E por
isso, não são vistos com respeito, mas antes com inveja. Isso faz
com que os ignorantes assaltem moralmente e até fisicamente aqueles
que são bons estudantes, ao passo que não se esforçam para mudar
sua própria condição por não verem vantagem nisso. Isso não
apenas fomenta a mediocridade entre as crianças, mas também o
bullying, porque
cada criança procura um meio de se sobressair, logo, se não tem
sentido se sobressair por saber mais, elas talvez procurem se
sobressair pela força física e pelo controle sobre os outros. Os
que estudam e se esforçam precisam ser recompensados com mais do que
simples notas no histórico escolar. Mas isso precisa ser devidamente
policiado também, para evitar o surgimento de oligarcas. Aqueles que
tem desempenho ruim devem receber também atenção para que não
sejam excluídos. Afinal, muitas vezes um aluno vai mal por causa do
professor, por causa de um problema de saúde ou familiar, por causa
de condições que estão além de seu controle. O professor então
precisaria atentar não apenas para os bons estudantes, mas também
para os péssimos.
Como
decorrência da crise na família, as escolas acabam também
desempenhando tarefas tipicamente familiares. Para que o aluno trate
a escola com mais seriedade, ele precisa saber que ali não é sua
casa. Isso não significa ser demasiado duro com o aluno, mas que a
escola deixasse claro que ali não é o lugar para aprender aquilo
que deveria ser aprendido dos pais. Ao recusar esses papéis, a
escola está forçando os pais a assumir responsabilidade pelo filho,
o que é o correto.
Só
que isso não seria uma medida adotada pelas escolas particulares, as
quais Arendt deixa de fora de seu discurso,14
porque as escolas particulares e também as escolas paroquiais não
são “uniformizadas” como as escolas do Estado. Cada uma funciona
da maneira que lhe apraz. Isso
porque a escola particular precisa de clientes, ela é uma empresa
inserida num mundo capitalista competitivo. Ela precisa se
diferenciar da concorrência para não definhar e uma escola que tire
dos pais o máximo possível de responsabilidade vai bem entre pais
que não querem assumir tais responsabilidades. Então, as escolas
particulares continuarão quebradas em sentido moral
enquanto
a transferência de responsabilidade for lucrativa.
Resumindo.
“Resolver”
a crise na educação não é um trabalho simples porque não é um
trabalho meramente político, mas também psicológico. Atacar uma
ideia (o “sistema”) sem relevar os aspectos materiais e palpáveis
que a compõem (as pessoas que fazem o sistema, isto é, alunos,
professores e Governo) é fazer metafísica desnecessária.15
Seria
necessário restituir a autoridade dos pais e professores, seria
necessário que estes fossem mais responsáveis, seria necessário
que os alunos vissem benefícios em aprender e seria necessário que
a escola não fosse um ambiente de infantilização dos alunos, mas
um ambiente no qual eles se preparam para o mundo adulto, o que só
pode ser alcançado quando a escola parar de ser também família.
Conclusão.
Friedrichsburg, Königstein, Saxônia. |
Eu
não quis, com este trabalho, tirar de Arendt a razão em dizer que o
problema na educação é também um problema político, mas quis
mostrar que há também uma face psicológica, existencial por trás
da crise, e que atacar somente a política é um ato de má-fé
sartriana (embora ela não faça isso, há quem faça).16
A
política influi sobre muitas coisas, mas a política é feita por
nós também. A política é feita por pessoas que escolhem seus
governos. Isso é válido para qualquer tipo de política, não
apenas a política estatal nacional que se mostra com mais
frequência, mas também para as políticas mais pessoais e mais
práticas que estão ao nosso redor: a família e também a escola.
Mudar a escola não é apenas questão de mudar o governo, é também
questão de mudar professores e alunos, que às vezes também são
afetados pelas condições dentro de suas famílias. Muito material
se produziu contra o governo, mas pouco se produz contra a pessoa,
levando alguns a crer que a culpa nunca é deles, mas sempre do
Estado.
O
grande problema que não foi ainda resolvido é que operar esse tipo
de mudança requer educação, que ainda está sob a
crise.
Porém, é possível tirar a educação dessa crise de forma gradual,
um passo de cada vez, passos sendo operados por aqueles que já
conseguiram uma educação decente em meio ao caos. Esses somos nós,
filósofos. É importante continuar a produzir, não apenas para o
governo, mas também para pessoas, que possam mudar sua atitude
individual dentro na educação, para que não passem suas vidas
esperando de braços cruzados pela reforma política. Ou seja, se não
conseguirmos tirar a educação desta crise, podemos pelo menos
permitir que ela respire, agindo como pudermos sobre esses pontos
individuais, sem descuidar dos mais gerais. Porém, por ser uma crise
grande, embora não totalmente paralisante, ela não pode ser
resolvida de imediato e talvez nem num futuro próximo.
Referências bibliográficas.
ALMEIDA,
Yure
Cézar de
Moura. Por que a crise afetou a educacao? Disponível em:
<https://pedrapapeletesoura.wordpress.com/2015/05/15/por-que-a-crise-afetou-a-educacao/>.
ARENDT,
H. Entre
o passado e o futuro.
Tradução
de Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Editora Perspectiva,
2000.
ARISTÓTELES.
Metafísica.
Tradução
de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Editora Globo, 1969.
_______________________________________
1Arendt
fala especificamente de uma crise ideológica que afeta vários
campos, inclusive a educação. É uma crise “na” educação, no
sentido de que ela vem de fora e afeta a educação. Não uma crise
“da” educação, porque não se origina nela.
2ARENDT,
página 226.
3ARENDT,
página 223.
4ARENDT,
página 235.
5ARENDT,
página 243.
6ARENDT,
páginas 237-238.
7ARENDT,
página 228.
8ARENDT,
página 233.
9ARENDT,
página 229.
10ARENDT,
página 231.
11ARENDT,
páginas 230-231.
12ARENDT,
página 225.
13ARISTÓTELES,
Livro I, 981b, 5-10, página 38
14ARENDT,
página 227.
15Esta
não é uma expressão redundante; existe metafísica necessária.
Mas é desnecessária neste caso porque os críticos estariam
atacando uma ideia abstraída de elementos bem materiais. Logo, não
é necessário fazer metafísica desse problema.
16Para
Arendt, a raiz da crise que afeta esses vários campos, política,
família e educação, é a forma como encaramos o passado, que
levou à contestação do conceito de autoridade. A crise vem do
ataque à autoridade nesses diversos campos. Eu não estou dizendo
que Arendt pensa que é um problema exclusivamente político, mas
que ela pensa que também é político e, com isso, estou de acordo.
Para
citar este documento (ABNT/NBR 6023: 2002):
ALMEIDA, Yure Cézar de Moura: A
Crise Anunciada por Arendt e
seus desdobramentos modernos. Praxis Jurídica, Ano III, N.º 03,
09.05.2016 (ISSN 2359-3059). Disponível em: <http://praxis-juridica.blogspot.com.br/2016/05/a-crise-anunciada-por-arendt.html>. Acesso em: .
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