quarta-feira, 12 de julho de 2017

Do Direito Fundamental à Saúde no Ordenamento Jurídico Nacional.

Bartolomé, Esteban Murillo (1617–1682).


Luis Eduardo Mendes Dantas

(Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Ceará (2013) e Pós-graduação em Direito Constitucional pela UCAMPROMINAS (2017). Servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.)


RESUMO

Este estudo tem como objetivo uma análise acerca do direito fundamental à saúde, abrangendo sua natureza de norma de eficácia limitada de caráter programático, perpassando por uma análise das gerações/dimensões dos direitos fundamentais, bem como o real significado do direito a saúde, finalizando com as singularidades deste direito, que encontra-se cristalizado na Constituição Federal de 1988, abalizado na mais douta doutrina, além de uma pequena imersão na Lei do Sistema Único de Saúde.

Palavras-Chaves: Direito à Saúde. Direitos Fundamentais.Sistema Único de Saúde.

ABSTRACT
This study aims at an analysis of the fundamental right to health, covering its nature as a norm of limited efficacy of a programmatic nature, going through an analysis of the generations / dimensions of fundamental rights, as well as the real meaning of the right to health, ending with The singularities of this right, which is crystallized in the Federal Constitution of 1988, based on the most learned doctrine, in addition to a small immersion in the Unified Health System Law.

Key Words: Right to Health. Fundamental rights. Health Unic System.


INTRDOUÇÃO

O Direito Fundamental à Saúde é previsto na Constituição Federal de 1988, no Título VII, referente à Ordem Social, no capítulo I, Seção II, mais precisamente no art. 196. Tal dispositivo assegura de forma clara que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (BRASIL, 1988).
Trata-se aqui de um genuíno direito social, que deve ser prestado positivamente pelo Estado Democrático de Direito com a finalidade de proteger o bem fundamental mais importante, a dignidade da pessoa humana. Nesse ponto, insta revelar o pensamento de Ingo Sarlet (2012, p. 577), no qual caracteriza o direito à saúde como algo além da simples conexão com o direito à vida, encontrando-se igualmente vinculado ao direito à integridade física, sendo ambos atrelados ao preceito fundamental acima citado, gozando de indiscutível importância.
Para facilitar a compreensão acerca da dimensão deste direito fundamental, necessário se faz discutir acerca de pontos relevantes, como a teoria dos direitos fundamentais, os direitos sociais, do qual a saúde é espécie, e a eficácia destes no mundo jurídico, concluindo-se o estudo com um aprofundamento sobre o próprio direito em pauta.

2.1 Teoria dos direitos fundamentais.

Inicialmente, faz-se mister conceituar o que seria direitos fundamentais, segundo o qual, na visão da doutrina de Silva (2004, p. 558), seriam assim entendidas aqueles que estão positivados na carta constitucional de um determinado país, configurando verdadeiras prerrogativas e instituições que garantem liberdades humanas, a vida com dignidade a convivência pacífica em sociedade, sendo inerentes a própria existência da espécie humana em seu estado social. São fundamentais, portanto, porque sem eles não haveria nem mesmo possibilidade de sobrevivência e coexistência. A titularidade é do homem, aqui tratado como representante de toda humanidade.
Há de se ressaltar que tais direitos não surgiram de forma repentina, sendo fruto, na verdade, da evolução do próprio ser humano. Daí falar-se que uma de suas características é a historicidade. Alguns autores narram a história dos direitos fundamentais em paralelo com a história do surgimento do Estado Constitucional de Direito, podendo-se dizer que tais assuntos são dependentes um do outro. Para Sarlet (2012, p. 252 -254), existiu um momento pré-histórico dos direitos fundamentais, quando se iniciou a concepção das primeiras ideias de direitos naturais dos homens (Idade Média até o século XVIII), para só então falar-se em Estados Constitucionais e direitos fundamentais (século XVIII em diante).
Após as revoluções liberais, deu-se início a era dos Estados Constitucionais, os quais possuíam uma Carta que limitava o poder absolutista do monarca. A partir daí, de forma superficial, tem-se os primeiros indícios de direitos fundamentais, especialmente atrelados ao direito de liberdade.
É comum, nesse ponto, mostrar as dimensões de evolução dos direitos fundamentais em gerações ou dimensões, dada a evolução (expansão) gradativa destes, sendo pacífico, na doutrina constitucional, apontar ao menos três gerações ou dimensões (nomenclatura reputada mais técnica), inspiradas no lema francês que marcou a revolução que deu fim ao estado absolutista: liberdade, igualdade e fraternidade.
Logo, os direitos de primeira dimensão estão relacionados à liberdade. São caracterizados como direitos individuais de prestação negativa pelo Estado. Nesse caso, o Estado se abstém de intervir na esfera privada, estando o indivíduo protegido contra suas arbitrariedades, comuns no absolutismo. Segundo Bonavides,

Os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente. (BONAVIDES, 2004, p. 563).

Já os direitos de segunda geração consagram a igualdade. Surgiram com o descaso estatal para com os problemas sociais que brotaram diante do aumento demográfico nos países mais desenvolvidos e do agravamento das disparidades entre os grupos sociais. Pode-se dizer que o marco para surgimento destes foram a Constituição de Weimar (Alemanha) e a Constituição Mexicana de 1917, por preverem em seus bojos direitos de índole social.
Assim, conforme Gilmar Mendes (2012, p. 172) preleciona, esses direitos não correspondem mais a uma abstenção do Estado, e sim a uma prestação positiva, na busca pela igualdade entre os cidadãos, em sua acepção material (isonomia substancial). Destarte, compreende-se, de forma assente na doutrina, que a segunda dimensão representa os direitos sociais, como saúde, lazer, trabalho, assistência social, educação, dentre outros.
Nesse ponto, realizando um paralelo entre os direitos fundamentais de primeira e segunda dimensões, Marmelstein (2008, p. 50) aduz que os de primeira dimensão possuíam a simples tarefa de frear o Estado, ou seja, limitar o poder estatal frente as liberdades públicas (atuação negativa). Enquanto isso, os de segunda dimensão impõem ao Estado diretrizes, tarefas e deveres com a finalidade de promover a justiça social, possibilitando aos cidadãos uma melhor condição de vida, maior dignidade, pressupostos básicos para o exercício da liberdade, o que proporcionaria, por consequência, um maior desenvolvimento do homem.
Há ainda os direitos fundamentais da terceira dimensão, mais recentes na escala de evolução do homem, que são caracterizados por não possuírem titularidade individualizada, e sim coletiva, transbordando a alçada dos direitos subjetivos, passando-se para dos direitos transindividuais, consagrando o terceiro ponto do lema francês, fraternidade ou solidariedade. Nessa dimensão, destacam-se os direitos ao meio ambiente saudável, à biodiversidade, ao desenvolvimento da comunicação, à informática, e ao desenvolvimento econômico.
Para Sarlet,
Os direitos fundamentais da terceira dimensão, também denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-individuo como seu titular, destinando-se a proteção de grupos humanos (povo, nação), e caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade transindividual (coletiva ou difusa). (SARLET, 2012, p. 262)

Ainda com base na doutrina de Sarlet (2012, p. 263), depreende-se que a distinção deste perante os demais direitos não reside simplesmente na sua titularidade, mas sim na perspectiva de afetação, tendo em vista que as consequências de violação desses direitos prejudicam toda a humanidade, e não indivíduos isoladamente. Além disso, a sua tutela exige responsabilidade não somente do Estado, mas de toda a coletividade em escala mundial, muitas vezes, posto a sua grandeza.
Segundo Bonavides (2004, p. 569), os direitos em tela possuem alto grau de humanismo e universalidade, já que os destinatários consistem em toda a raça humana, caracterizando o próprio pressuposto da existencialidade desta.
Com o advento das políticas neoliberais e da globalização, a doutrina mais moderna aponta ainda a existência de mais duas dimensões de direitos fundamentais. Apesar de não existir consenso quanto ao conteúdo destas, é importante mencioná-las.
A quarta dimensão, conforme Bonavides (2004, p. 571), nasce da própria globalização política, consistindo na última fase do estado social.
Bonavides aduz que:
São direitos da quarta geração o direito a democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. (BONAVIDES, 2004, p. 572)

Já a quinta dimensão, para Bonavides (2011, p. 590), seria o direito à paz mundial. Para este autor, a paz seria o corolário de todos os fundamentos que homem utiliza para reger a vida em sociedade. Tal direito surgiu com a Declaração das Nações Unidas na busca pela paz mundial após a Grande Segunda Guerra. A ausência de paz, segundo o autor, seria prejudicial a consecução dos demais direitos, tornando-os inviáveis em uma situação de caos.

2.2 Da eficácia das normas de direito social

Para se ter uma ideia da eficácia da norma constitucional que dispõe sobre o direito a saúde na Constituição Federal de 1988, faz-se necessário uma breve discussão acerca da eficácia das normas constitucionais de uma forma geral, perpassando pela tradicional classificação proposta primeiramente por Ruy Barbosa, e posteriormente por José Afonso da Silva, idealizada antes da atual Carta Magna brasileira, até uma concepção mais moderna sobre o assunto.
A classificação proposta por Ruy Barbosa separa as normas constitucionais em autoaplicáveis, sendo aquelas que independem de qualquer ação do poder legislativo para surtir a eficácia esperada, e não autoaplicáveis, sendo aquelas que dependem da ação do legislador para produzirem a eficácia sócio jurídico proposta pelo constituinte. Segundo Sarlet, tal classificação se dava da seguinte forma:
No que diz como primeiro grupo, o das normas autoaplicáveis (ou autoexecutáveis), Ruy Barbosa firmou posição no sentido de que normas autoaplicáveis seriam aquelas que estariam aptas a gerar seus efeitos independentemente de qualquer atuação do legislador, já que seu conteúdo se encontra devidamente determinado. (...). Já no que concerneas normas não autoaplicáveis {ou não autoexecutáveis), Ruy Barbosa, aqui também valendo-se das lições do mesmo George Tucker, salientam que muitas normas constitucionais requerem urna ação do legislador para tornar efetivos os.seus preceitos, visto que "não revestem dos meios de acção essenciais ao seu exercício os direitos, que outorgam, ou os encargos que imp6em: estabelecem competências, atribuições, poderes, cujo uso tem de aguardar que a Legislatura, segundo o seu critério, os habilite a se exercerem''. (SARLET, 2012, p. 161).

Antes de adentrar a classificação proposta por José Afonso da Silva, deve-se explicar a diferença entre aplicabilidade, eficácia jurídica e eficácia social das normas constitucionais. Na doutrina de Gonçalves, (2011, p. 92) a aplicabilidade se refere, por óbvio, à possibilidade de sua aplicação na orbita jurídica, pois detém todos os requisitos para tanto, quais sejam: vigência, validade e eficácia. Já eficácia jurídica é a potencialidade que a norma possui para se concretizar no mundo dos fatos. Para o autor acima citado, “todas as normas constitucionais teriam eficácia jurídica, variando-se o seu grau (e com isso aplicabilidade! Ou seja, possibilidade de aplicação, de serem realizadas, praticadas!).” (GONÇALVES, 2011, p. 92). Diferente desta última, a eficácia social da norma constitucional nada mais é do que a efetividade, que seja, a real produção de efeitos concretos da norma. Para Barroso,
Efetividade (eficácia social) significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social. (BARROSO, 1993, p. 79).

Feito este introito, passa-se a discorrer acerca da classificação clássica no direito brasileiro sobre a eficácia das normas constitucionais concebida por José Afonso da Silva. O doutrinador separou-as em normas de eficácia plena, de eficácia contida (ou restringível) e de eficácia limitada.
Para Sarmento, as normas de eficácia plena possuem todos os elementos necessários para produção de seus efeitos de forma imediata, dotada, portanto, de aplicabilidade imediata, direta. Já as normas de eficácia contida, surgem no seio jurídico com a eficácia plena, possuindo as mesmas características da norma de classificação anterior, no entanto, por opção do constituinte, tal norma pode sofrer restrições perpetradas pelo legislador infraconstitucional. Por último, as normas de eficácia limitada, sendo aquelas que não são autossuficientes, carecendo de uma atuação do legislador infraconstitucional para que haja sua implementação, possuindo aplicabilidade mediata e indireta. (SARMENTO, 2012, p. 530).


Pharaoh ‪Akhenaten‬ and his wife ‪Nefertiti‬.


             Estas últimas normas subdividem-se em normas de princípio institutivo e de princípio programático. As primeiras dispõem sobre organização do estado e criação de instituições que amparam e sustentam os direitos constitucionais. Já o segundo institui programas a serem seguidos pelo legislador infraconstitucional na construção do Estado Democrático de Direito, podendo ser classificados como impositivos (obrigação de se seguir) e facultativos (opção política do legislador infraconstitucional).
A doutrina, adotando tal classificação, inclui o direito à saúde no patamar de norma constitucional de princípio programático impositivo, já que se trata de um dever do Estado promover e concretizá-lo, não sendo uma faculdade do legislador infraconstitucional. Assim, a política pública de promoção da saúde se impõe aos executores e legisladores, no entanto sua aplicação não é direta e imediata, fazendo-se necessária uma atuação positiva dos poderes públicos.
Apesar de tradicional e didática, a classificação acima relatada é alvo de críticas, principalmente por ter sido construída antes da vigente Constituição Brasileira, que traz em seu artigo 5º, parágrafo primeiro, o seguinte: “§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” (BRASIL, 1988). Ora, a Carta Magna, de forma positiva, consagra que todas as normas que definem direitos fundamentais possuem aplicação imediata, não havendo exceção. Assim, até mesmo as normas de suposta eficácia limitada seriam de aplicação imediata.
Tal crítica é abraçada pro Ingo Sarlet, que aduz da seguinte forma:
No que concerne às sistematizações mais antigas (anteriores à vigência da atual Constituição), não é de se estranhar que tal tenha ocorrido, já que inexistia dispositivo similar ao consagrado no art. 5o, § 1º, de nossa Lei Fundamental (aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais), salientando-se, todavia, que alguns dos autores nominados (de modo especial Celso R. Bastos e José Afonso da Silva) dispensaram alguma atenção ao problema em obras mais recentes, sem, no entanto, procederem a uma reformulação substancial de suas concepções à luz do citado preceito. Em que pese este aspecto, suas contribuições trazem a marca de sua inequívoca autoridade intelectual e serão devidamente consideradas. (SARLET, 2009, p. 257).

No entanto, o mesmo autor pondera que, dada as diferentes técnicas de redação utilizadas pelo constituinte na confecção da Carta de 1988, algumas normas, apesar de trazerem em seu seio direitos fundamentais, possuem graus de eficácias diferenciadas (SARLET, 2009, p. 257). Assim, sustenta-se que a definição rasa proposta pela doutrina tradicional não deve ser encarada de forma absoluta, do mesmo modo que o supracitado dispositivo constitucional não dever ser empregado em sua inteireza a todas as normas definidoras de direitos fundamentais.
Assim, conclui-se, neste tópico, que o direito à saúde se encaixa na classificação de norma constitucional de eficácia limitada de princípio programático impositivo, devendo-se fazer ponderações a sua aplicabilidade e eficácia jurídica, não se podendo caracterizar como mediata e indireta de forma absoluta.
2.3 Do direito à saúde na Constituição de 1988

Neste tópico, far-se-á uma análise do direito à saúde de uma forma geral, conceituando-se o que é saúde, como se dá sua proteção, bem como, caracterizar tal direito dentro da Constituição brasileira de 1988.
Segundo Bulos, “Saúde é estado de completo bem estar físico, mental e espiritual do homem, e não apenas a ausência de afecções e doenças” (BULOS, 2009, p. 1378).
Para Gonçalves,
É indiscutível que o direito à saúde relaciona-se de forma direta com o direito à vida. Todavia, não é nada fácil, nem simples, desenvolver um conceito jurídico do que seja saúde. Segundo Reissinger, o principal conceito se dá a partir do próprio preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde: “estado completo de bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças ou enfermidades.” (GONÇALVES, 2011, p. 485).
Como dito no início deste estudo, o direito à saúde é assegurado constitucionalmente como um dever do Estado, devendo ser ele prestado a quem necessitar. No entanto, consoante os dizeres de Fabio de Souza Silva (, 2010, p. 16-17), não se trata de uma garantia absoluta de que todos serão saudáveis, pois tal bem seria impossível de tutela jurídica, sendo o Estado garantir que todos serão saudáveis, da mesma forma que é impossível garantir a felicidade de todos os cidadãos.
O que se pretende dizer com isso é que o Estado brasileiro, ao prever o direito à saúde em sua Constituição, não está assegurando a saúde absoluta de todos, mas apenas obrigando-se a prestar assistência a este bem, ou seja, disponibilizar os meios necessários a garantir uma vida saudável. Trata-se, na verdade, de um direito à proteção da saúde, de disponibilização de instrumentos para a consecução desta.
O direito à saúde, por ser direito social, concretiza-se a partir de prestações positivas e negativas. Pela primeira, deve o Poder Público realizar medidas de prevenção no combate às doenças potenciais, bem como deve prestar medidas paliativas para tratar enfermidades, proporcionando o bem estar pleno dos cidadãos.
Acerca das prestações positivas, há subdivisão bem delineada por Martins, vejamos.
Sérgio Pinto Martins afirma que o sistema de saúde envolve, pelo menos, três espécies de categorias, quais sejam, prevenção, proteção e recuperação. A prevenção diz respeito aos meios para evitar doenças, nos quais se inserem a vigilância sanitária e epidemiológica. A proteção relaciona-se a uma atuação constante antes mesmo da manifestação da doença. Já a recuperação envolve a participação dos serviços sociais e a reabilitação profissional, com vistas à reintegração do trabalhador tanto à sua atividade profissional quanto ao meio social. (MARTINS, 2013, p. 514)

Apesar do artigo 196, da Constituição Federal de 1988 ser tratado como norma programática, o direito fundamental nele insculpido não pode ser postergado, negado, condicionado a quem dele precise. Como foi dito anteriormente, trata-se de norma impositiva, não estando no campo de faculdade do legislador infraconstitucional, muito menos do executor das políticas públicas.
Tal imposição se explica pelo próprio complexo principiológico que norteia a comentada norma fundamental. O direito à saúde possui como diretrizes a universalidade, a isonomia e a integralidade do atendimento.
Universalidade traz a ideia de que o serviço de proteção à saúde é direcionado a todos, independentemente da qualidade da pessoa que está em busca deste direito. Já a isonomia é atrelada a ideia de não segmentação, ou seja, a política pública empreendida na proteção à saúde não é direcionada a seguimento específico da sociedade. Já a integralidade propõe que as ações do Poder Público de prevenção, proteção e recuperação estejam integradas em uma estrutura completa que proporcione a tutela devida ao direito à saúde (FERREIRA, 2015, p. 48-50).
Para compreender de forma minuciosa o direito estudado, importante mencionar as lições de Gilmar Mendes, que, de forma didática, fracionou o dispositivo constitucional em estudo (artigo 196), apontando seis pontos a serem analisados separadamente, vejamos:
O direito à saúde está previsto no art. 196 da Constituição Federal como (1) “direito de todos” e (2) “dever do Estado”, (3) garantido mediante “políticas sociais e econômicas (4) que visem à redução do risco de doen­ças e de outros agravos”, (5) regido pelo princípio do “acesso universal e igualitário” (6) “às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”. (MENDES, 2012, p. 764)

O primeiro ponto (direito de todos) infere-se existência de um direito, tanto individual, como coletivo, não se podendo negar força normativa a tal norma apenas por esta ser catalogada como programática. Assim, pode-se dizer que há uma relação obrigacional entre Estado e indivíduos (titularidade de todos), sendo um verdadeiro direito subjetivo público que pode ser exigido do Estado.
O segundo ponto ressalta que existe um dever estatal, que se estende a todas as esferas federativas, que devem concretizar tal direito através de políticas públicas.
O terceiro ponto destaca a necessidade de que tal direito seja viabilizado por meio de políticas sociais e econômicas, na qual os Poderes Públicos farão escolhas para alocarem os recursos da melhor forma para se prestar um serviço público digno.
O quarto ponto traduz uma preocupação maior do constituinte com medidas preventivas, inclusive sendo tratadas como prioritárias, conforme dispõe o artigo 198, da Carta Magna. Essa prioridade se dá tendo em vista a diferença dos custeios entre medidas preventivas e paliativas, sendo estas últimas comprovadamente mais dispendiosas.
O quinto ponto fora retratado anteriormente, sendo os princípios que embasam os serviços de saúde. Já o derradeiro ponto refere-se a maior dificuldade de concreção do direito à saúde, a prestação de ação por parte do Poder Público, através de políticas públicas, tendo em vista que nosso ordenamento jurídico é vasto quando se trata do assunto “direito à saúde”.
Assim, tem-se uma melhor compreensão do que se trata propriamente o direito da saúde, ou seja, um direito subjetivo, que pode ser exigido do Estado, tendo em vista tratar-se de obrigação fundamental do ente público assegurar a proteção à saúde através de políticas estatais.
Compreendido o direito à saúde, importante se faz comentar o sistema brasileiro criado para prestar a proteção ao direito à saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo Bulos (2009, p. 1381), “o Sistema Único de Saúde (SUS) consiste numa rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços públicos de saúde”.
Tal sistema foi instituído pela Lei 8.080/90, que prevê uma organização descentralizada, na qual as esferas federativas possuem autonomia para concretizar as políticas públicas referentes ao direito à saúde, ao mesmo tempo em que impõe um regime hierarquizado, no qual a União fica responsável por traçar diretrizes nacionais a serem seguidas pelos Estados e Municípios na formulação de suas políticas públicas. Barroso define bem essa repartição de competência, vejamos:
A Lei nº 8.080/90 procurou ainda definir o que cabe a cada um dos entes federativos na matéria. À direção nacional do SUS, atribuiu a competência de “prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional” (art. 16, XIII), devendo “promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal” (art. 16, XV). À direção estadual do SUS, a Lei nº 8.080/90, em seu art. 17, atribuiu as competências de promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde, de lhes prestar apoio técnico e financeiro, e de executar supletivamente ações e serviços de saúde. Por fim, à direção municipal do SUS, incumbiu de planejar, organizar, controlar, gerir e executar os serviços públicos de saúde (art. 18, I e III). (BARROSO, 2008, p. 16)

Com esse modelo de saúde, o constituinte rompeu com os sistemas até então propostos pelas Constituições pretéritas, ao adotar uma rede regionalizada e hierarquizada. Gilmar Mendes confirma tal rompimento:
Ao criar o SUS, o constituinte originário rompeu com a tradição até então existente e adotou uma rede regionalizada e hierarquizada, segundo o critério da subsidiariedade, como forma de melhor concretizar esse direito social. Sua concepção decorreu em parte da evolução do sistema que antes era instituído em nível ordinário, como o Sistema Nacional de Saúde, criado pela Lei n. 6.229/75, e o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (MENDES, 2012, p. 766).

Segundo a Lei 8.080/90, o SUS compreende o conjunto de ações e serviços de saúde prestados pelos entes políticos de todas as esferas. Tais prestações podem ser realizadas pelo setor privado de forma complementar. Ao sistema compete a criação de políticas públicas atinentes a prevenção (política sanitária), tratamentos, distribuição de medicamentos, entre outros listados no artigo 6º, da mencionada Lei.
A insuficiência de tais políticas ou a falta delas culminam na judicialização do direito à saúde, justamente por se tratar de um direito fundamental, que, apesar de ser insculpido em norma de caráter programático, tem o peso de um direito subjetivo que pode ser exigido perante o Poder Judiciário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo exposto, percebe-se que o direito à saúde é um direito fundamental de segunda dimensão, mas que, dado a nova visão da doutrina moderna, não pode ser tratado como apenas uma promessa vazia, mas como um direito que deve ser realizado pelo Estado em seu máximo.
Assim, como um dever constitucional imposto ao Estado por meio de uma norma de eficácia limitada programática, cumpre este manejar políticas públicas tendentes a concretizar tal direito.
As políticas devem seguir o exposto na Lei que regula o Sistema Único de saúde, de forma regionalizada e universal, seguindo os princípios lá instituídos, de modo a fornecer uma saúde condizente com princípio da dignidade da pessoa humana.
Ante a insuficiência da prestação positiva do Estado, cumpre ao Poder Judiciário, na qualidade de guardião dos direitos fundamentais, intervir em tais políticas públicas, dentro dos limites constitucionais, para compelir violações a esse direito.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, limites e possibilidades da Constituição brasileira, 1993.

______. Da falta de efetividade à Judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para atuação judicial.Constituição e Efetividade Constitucional. Bahia: Jus Podvim, 2008.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p

______, Lei n º 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Publicada no D.O.U. de 20/09/1990 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm > Acesso em 02/11/2016

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010

FERREIRA, Patrícia Cândido Alves. Direito fundamental à saúde: a questão de sua exigibilidade. São Paulo, 2015. 107 f. Dissertação (Mestrado – Programa de pós-graduação em Direito do Trabalho e da Seguridade Social) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2015.

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 33 ed. São Paulo: Atlas, 2013.

SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. Revista dos Tribunais, 2012.

______. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª ed., rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009

SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Ético-Jurídicos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. (Orgs.). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

______. Direito Constitucional: Teoria, História e Métodos de Trabalho. Belo Horizonte. Fórum, 2012.

SILVA, Fábio de Souza. Tutela judicial do direito à saúde. 2010. 204 f. Dissertação (mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito. Orientador: Ricardo Lobo Torres.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.






Para citar este documento (ABNT/NBR 6023: 2002):


Dantas, Luis Eduardo Mendes: Do Direito Fundamental à Saúde no Ordenamento Jurídico Nacional. Práxis Jurídica, Ano IV, N.º 01, 05.03.2017 (ISSN 2359-3059). Disponível em: <http://praxis-juridica.blogspot.com.br/2017/07/do-direito-fundamental-saude-no.html>. Acesso em:  
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