Jacek Yerka, Walking Lesson. Fonte:Internet. |
Felipe Arruda Aguiar Sobreira da Silveira
(Advogado, graduado pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Constitucional, pela Faculdade Damásio)
RESUMO
Objetiva-se,
com o presente estudo, analisar, criticamente, as principais questões
e polêmicas envolvendo a judicialização de políticas públicas na
área da saúde, com ênfase nas limitações e nos condicionantes
que os magistrados devem ter em vista ao se depararem com questões
desse jaez. Com isso, intenta-se traçar alguns parâmetros para uma
decisão legítima e efetivamente justa na área das políticas de
saúde. Inicialmente, traça-se uma conceituação adequada do termo
saúde, para, então, classifica-lo juridicamente como um direito
fundamental social, a ser efetivado mediante políticas públicas. Em
seguida, analisa-se em que consistem as políticas públicas de
saúde, bem como se – e em que medida – elas podem ser exigidas
judicialmente. Partindo da noção de que se tratam de direitos
subjetivos prima
facie, passa-se ao
enfrentamento dos limites à concessão judicial de políticas
públicas nessa seara, de acordo com a regra da ponderação,
apreciando-se, a fundo, as questões da reserva do possível e do
mínimo existencial. Por fim, é abordada, propriamente, a
judicialização das políticas públicas; suas causas, seus
fundamentos e suas consequências, concluindo-se com o estudo dos
requisitos para uma decisão legítima nesse âmbito, que envolve
dois requisitos básicos: a excepcionalidade e o dever de
fundamentação.
Palavras
chave: Direito
Constitucional. Direitos Fundamentais. Direito à saúde.
Judicialização de políticas públicas. Reserva do possível.
Mínimo existencial. Ponderação.
ABSTRACT
The
objective is, with the present study, analyze, critically, the major
issues and controversies involving the legalization of public
policies in health, with emphasis on the limitations and constraints
that magistrates should aim when faced with questions of this ilk .
Thus, it attempts to trace some parameters for a legitimate and fair
decision effectively in the area of health policy. Initially,
we draw a proper definition of the term health, then classify it
legally as a social fundamental right, to be fulfilled by public
policies. Then it analyzes what constitute public health policies,
and whether - and to what extent - they may be required in court.
Based on the notion that these are subjective rights prima facie, it
will proceed to confront the limits to judicial award of public
policies in this harvest, according to the rule of weighting, we are
enjoying the background, reserve issues as possible and the
existential minimum. Finally, it is addressed, specifically, the
legalization of public policies; its causes, its foundations and its
consequences, concluding with the study of the requirements for a
legitimate decision in this area, which involves two basic
requirements: the exceptional nature and the obligation to state
reasons.
Keywords:
Constitutional right. Fundamental rights. Right to health.
Legalization of public policies. Reserve for contingencies.
Existential minimum. Weighting.
Sumário
INTRODUÇÃO
1. O DIREITO À
SAÚDE
1.1. Definição de
saúde
1.2. Direito à
saúde como direito fundamental social
1.3. As políticas
públicas de saúde
1.4. A exigibilidade
do direito social à saúde
2. OS LIMITES DA
PONDERAÇÃO
2.1. A reserva do
possível
2.1.1. Reserva do
possível fática
2.1.2. Reserva do
possível jurídica
2.2. O Mínimo
existencial
3. A JUDICIALIZAÇÃO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS
3.1. Causas e
consequências da crescente judicialização
3.2. Legitimidade
das decisões judiciais em políticas públicas de saúde
3.2.1. Excepcionaldiade
3.2.2. Dever de
fundamentação
4. CONSIDERAÇÕES
FINAIS
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
Fonte:Internet.
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Poucos
temas, em Direito Constitucional, têm sido tão debatidos atualmente
quanto a questão da judicialização de políticas públicas na área
da saúde. A jurisprudência nacional é extremamente rica no
assunto, sendo o Brasil um dos países mais ativistas na proteção
desses direitos.
Trata-se
de tema extremamente complexo e multidisciplinar, com origem em
aspectos políticos, jurídicos e sociais e com consequências
diversas para os litigantes, para o Estado e para toda a sociedade.
A
principal causa da crescente judicialização de direitos que,
normalmente, seriam assegurados a partir da ação do Executivo e do
Legislativo é a nova conformação em que se encontra o Direito, com
a Constituição no centro do Ordenamento Jurídico, exarando
comandos de caráter vinculante, inclusive para o Estado. Aliado a
esse fator, está a crise de legitimidade sofrida pelo Legislativo e
pelo Executivo, revelada publicamente pelas dezenas de escândalos de
corrupção, o que tem contribuído para o descrédito nestes dois
Poderes e para inflação do Judiciário.
Com
efeito, segundo a concepção jurídica atual, uma das premissas do
estudo da Constituição é o reconhecimento da sua força normativa,
do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições. É
dizer, as normas constitucionais são dotadas de imperatividade e sua
inobservância pode ensejar o cumprimento forçado, por determinação
judicial.
Paralelamente
ao crescimento da sua força normativa, verifica-se, com o
neoconstitucionalismo, um outro fenômeno: a constitucionalização
do direito, ou constitucionalização abrangente. Diversas
disciplinas e matérias que, anteriormente, eram tratadas apenas no
plano infraconstitucional passaram a receber alicerce constitucional.
No momento em que uma questão é disciplinada como norma
constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão
jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. Daí
o crescente aumento de demandas suscitando direitos sociais, que
normalmente estariam dentro do âmbito exclusivo das políticas
públicas
As
mudanças acima referidas são positivas e devem ser celebradas.
Pode-se dizer, atualmente, que o Poder Judiciário brasileiro “leva
a sério” os direitos sociais, tratando-os como autênticos
direitos fundamentais, ao passo que a via jurisdicional se
transformou efetivamente em um dos principais instrumentos de
efetivação desses direitos.
Nada
obstante, esse cenário traz também algumas questões complexas que
não podem ser ignoradas. Apesar de os direitos sociais, notadamente
o direito à saúde, serem tratados como direito de todos e dever do
Estado, não se pode deixar de lado a noção de limitação do
orçamento. Enquanto os anseios da população são infinitos, os
recursos para atendê-los são evidentemente limitados, sendo esse um
empecilho que não pode ser ignorado.
Outras
diversas questões se colocam como condicionantes ou limitações ao
atendimento pelo Judiciário das mencionadas políticas públicas, a
exemplo da tripartição dos poderes, da legitimidade democrática do
Judiciário, da capacidade institucional desse Poder, dentre outras.
Trata-se de um tema verdadeiramente complexo, polêmico e
multifacetário. O objetivo do presente estudo, evidentemente, não é
esgotar a matéria, mas realizar uma abordagem crítica do tema à
luz das referidas limitações que os magistrados brasileiros devem
ter em vista ao se depararem com questões desse jaez.
O
presente trabalho terá início com a abordagem do direito à saúde.
A princípio, será traçada uma concepção adequada do conceito de
saúde para, em seguida, classificar juridicamente esse direito.
Estabelecidas tais noções básicas, discorrer-se-á acerca das
políticas públicas, bem como a respeito da possibilidade de se
exigir judicialmente a prestação de serviços nessa área, ainda
que sem previsão prévia por parte do Estado.
No
segundo capítulo, serão enfrentadas as principais limitações para
a concessão judicial do direito à saúde, analisando-se, de forma
minuciosa, as questões da reserva do possível e do mínimo
existencial, segundo a regra da ponderação.
Por
fim, tratar-se-á, propriamente, da questão da judicialização de
políticas públicas na área da saúde; suas causas, fundamentações
e consequências. Em seguida, diante do quadro traçado, serão
esclarecidos os requisitos para uma decisão legítima nessa seara.
Antes
de dar-se início propriamente ao estudo do tema da judicialização
de políticas públicas de saúde, imprescindível traçar algumas
noções básicas acerca desse direito. É preciso entender o
conceito de saúde, bem como a classificação jurídica desse
direito. Além disso, cumpre indagar qual seria o meio
constitucionalmente previsto para efetivá-lo, assim como se seria
possível exigir judicialmente o cumprimento desse comando.
É
o que se passa a expor.
O
bem denominado saúde não apresenta um conceito invariável e
absoluto, porquanto sofre constantes modificações acerca da sua
concepção conforme os aspectos comportamentais, políticos,
econômicos, sociais e culturais envolvidos1.
O
significado do termo tem sido variado, de acordo com a época ou o
momento histórico. Ora entendido simploriamente como mera ausência
de enfermidade, ora concebido de forma abrangente, como um bem-estar
geral, ou mesmo como um valor social.
No
aspecto léxico da palavra, o dicionário Aurélio concebe saúde
como “o estado daquele cujas funções orgânicas, físicas e
mentais se acham em situação normal”2.
Na
história, a saúde deixa de ser aspecto mítico ou religioso e passa
a ser analisada racionalmente por Hipócrates, que, em detrimento do
pensamento retrógrado da influência de demônios e deuses no
surgimento da doença, valoriza a observação empírica e preleciona
a influência dos fatores externos, tais como o ambiente e o tipo de
vida, no funcionamento interno do organismo.3
Posteriormente,
em suas teorias, René Descartes, filósofo do séc. XVII, coloca a
saúde como ausência de doenças, num conceito adstrito ao âmbito
meramente fisiológico, e considera o corpo uma máquina, comparando
um homem doente a um relógio em mau funcionamento e um saudável a
um relógio em regular estado.4
Foi,
no entanto, apenas em meados do século XX que o conceito de saúde
passou a ser compreendido no contexto que hoje é abordado pelo
Direito brasileiro. Em 1946, sob forte influência dos movimentos
sociais pós-guerra, a Organização Mundial da Saúde (OMS), no
preâmbulo da sua Constituição, identificou a saúde como “o
estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a
ausência de doença ou de qualquer afecção”.
O
conceito acima referido foi a base que influenciou a legislação
brasileira do Sistema Único de Saúde (lei 8.080/90), a qual, em seu
art 3º dispõe:
Art. 3.o Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.
É
importante exercer uma análise crítica do conceito excessivamente
amplo traçado pela OMS e reproduzido no texto legal brasileiro. De
fato, à luz da dignidade da pessoa humana, é essencial que todo ser
humano tenha alimentação, moradia, saneamento básico, educação,
transporte, lazer etc. No entanto, inserir todos esses elementos no
conceito do direito à saúde parece excessivo e utópico, tornando
praticamente impossível que, na prática, o direito à saúde, tal
qual entabulado pela lei, seja efetivamente garantido a toda a
população. Essa conceituação, inclusive, dificulta a elaboração
de metas relacionadas aos serviços de saúde e acaba por fragilizar
a efetividade desse direito, abalando a já combalida noção que a
população tem acerca da ciência jurídica.
Na
doutrina, Germano Schwartz define a saúde como:
Um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças, ao mesmo tempo em que visa a melhor qualidade de vida possível, tendo como instrumento de aferição a realidade de cada indivíduo e pressuposto de efetivação a possibilidade de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar.5
Por
fim, extrai-se que não existe um conceito pacífico de saúde a ser
adotado. Na presente obra, a saúde deve ser entendida à luz do
ordenamento jurídico brasileiro, como um direito assegurado a todos
os cidadãos, que abrange não só a prevenção ou a recuperação
de doenças, mas também a assistência psicológica e social, a fim
de alcançar um completo bem-estar individual e coletivo.
A
expressão direitos fundamentais surgiu na França, em 1770, no
movimento político cultural que deu origem à Declaração Universal
dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.6
Para
José Afonso da Silva, direitos fundamentais são situações
jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não
convive, e, às vezes, nem mesmo sobrevive;
fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem
ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e
materialmente efetivados.7
São
os direitos fundamentais, desta feita, um conjunto de normas
jurídicas, elevadas ao status constitucional, que, fundamentando o
ordenamento jurídico, garantem, aos indivíduos e à coletividade,
os meios necessários para o pleno exercício da vida, com respeito
ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Os
direitos fundamentais, como normas fundantes do Ordenamento Jurídico,
são dotados de efetividade, imperatividade e aplicabilidade
imediata, conforme expressamente disposto no art. 5º, §1º da CF.
Em
outro giro, é tradicional e frequentemente repetida pela doutrina a
classificação dos direitos fundamentais em direitos de primeira, de
segunda e de terceira geração. Trata-se da “teoria da das
gerações dos direitos”, formulada por um jurista tcheco,
naturalizado francês, chamado Karel Vasak.8
Fonte:Internet.
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A
primeira geração dos direitos seria a dos direitos civis e
políticos, fundamentados na liberdade (liberté),
que tiveram origem com as revoluções burguesas. A segunda geração,
por sua vez, seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais,
baseados na igualdade (égalité),
impulsionada pela revolução industrial e pelos problemas sociais
por ela causados. Por fim, a última geração seria a dos direitos
de solidariedade, em especial o direito ao desenvolvimento à paz e
ao meio ambiente, coroando a tríade com a fraternidade (fraternité),
que ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, especialmente após
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.9
A
“teoria das gerações” acima referida obteve fama internacional
e tem sido repetida por juristas do mundo todo. Vale mencionar,
entretanto, que ela não é alheia a críticas. Com efeito, a
expressão “geração de direitos” foi e continua sendo bastante
questionada, tendo vista que ela dá a falsa impressão de
substituição gradativa de uma geração por outra, o que é
evidentemente um equívoco. Os direitos de liberdade não são
substituídos pelos de igualdade, nem estes pelo de fraternidade;
nenhum desaparece para o surgimento do outro, mas coexistem, a fim de
garantir verdadeira dignidade à pessoa humana. Além disso, a
expressão pode induzir à ideia de que uma geração pode ou deva
ocorrer quando a anterior já estiver madura o suficiente, o que
dificultaria bastante o reconhecimento de novos direitos.10
Em
razão dessas críticas, a doutrina moderna tem preferido o termo
dimensões, em vez de gerações, afastando a equivocada ideia de
sucessão.
Vale
mencionar, ainda, que, com a evolução da sociedade e da teoria dos
direitos fundamentais, vários doutrinadores sugerem novas gerações
ou dimensões de direitos fundamentais. Essa questão, todavia, não
será aprofundada no presente trabalho, por fugir do seu objeto
precípuo.
Quanto
à classificação do direito à saúde, parece evidente que ele
pertence à segunda “geração” de direitos fundamentais. É
dizer, ele se inclui no grupo dos direitos sociais, que impõem um
“atuar permanente” por parte do Estado, ou seja, uma ação
oriunda de uma prestação positiva de natureza material ou fática
em benefício ao indivíduo.11
A
Constituição de 1988 previu o direito à saúde no art. 6º do
texto constitucional, na parte que versa acerca dos direitos sociais.
O art. 196 da CF, no mesmo viés, estabelece expressamente que a
saúde é um dever do Estado.
Neste
sentido, o artigo 2º da Lei 8080/9023, que trata sobre as condições
para a promoção, proteção e recuperação da saúde, prevê que:
“a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado
prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.
O
artigo 23, inciso II da Carta Magna estabelece ser de competência
comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios o
cuidado da saúde e assistência pública, da proteção e garantia
das pessoas portadoras de deficiência. O artigo 24, inciso XII, por
sua vez, preceitua ser a União, o Estado e o Distrito Federal os
entes concorrentemente competentes para legislar sobre a matéria,
ficando os Municípios incumbidos de prestar serviços de atendimento
à saúde da população com apoio técnico e financeiro da União e
dos Estados.
Nesse
sentido, José Afonso da Silva:
A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperam.12
Parece,
portanto, inexorável que a Constituição adotou a configuração do
direito à saúde como um direito social, de segunda geração, que
demanda um agir do Estado para que seja efetivamente assegurado ao
cidadão.
Corrente
doutrinária, certamente inspirada na “teoria dos quatro status”13,
desenvolvida
por Georg Jellinek, considera, em síntese, que os direitos
fundamentais se dividiriam em positivos e negativos. Os direitos de
liberdade teriam caráter negativo, pois implicariam um não agir,
enquanto os direitos de igualdade, dentre os quais os direitos
sociais, teriam um status positivo, pois sua implementação
necessitaria de um agir por parte do Estado, mediante o gasto de
verbas públicas.
Nesse
contexto, o direito social à saúde deve ser compreendido como um
direito positivo, que é exercido segundo a atuação do Estado, o
que demanda a alocação de verbas públicas e todas as limitações
inerentes ao orçamento público.
Segundo
Canotilho, embora os direitos sociais sejam claramente de índole
positiva, eles podem também apresentar um componente negativo. Senão
vejamos.
O direito do trabalho não consiste apenas na obrigação do estado de criar ou de contribuir para criar postos de trabalho (...) antes implica também a obrigação de o estado se abster de impedir ou limitar o acesso dos cidadãos ao trabalho (liberdade de acesso ao trabalho); o direito à saúde não impõe ao Estado apenas o dever de atuar para constituir o Serviço Nacional de Saúde e realizar as prestações de saúde, (...) antes impõe igualmente que se abstenha de atuar de modo a prejudicar a saúde dos cidadãos.14
Vale
registrar, ainda, a compreensão de que não só os direitos
positivos demandam gastos públicos, mas qualquer direito fundamental
carece, em alguma medida, da atuação do Estado para efetivá-lo. Na
verdade, não existem direitos exclusivamente negativos, sendo um
erro pensar que os direitos de liberdade não geram custos ou tarefas
para o Poder Público. A proteção de qualquer direito exige a
mobilização de recursos financeiros, administrativos, legislativos
e judiciais, sem os quais nenhuma garantia é protegida.15
Fonte:Internet.
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Defendendo
essa tese, os autores norte-americanos Stephen Holmes e Cass Sustein
publicaram a obra “The cost of rights”16
(Os custos dos direitos). Segundo eles, todos os direitos, desde os
tradicionalmente denominados como direitos a prestações, até os
direitos de defesa (de liberdade) geram custos aos cofres públicos,
para que sejam realizados. Os direitos custam, no mínimo os recursos
necessários à manutenção da complexa estrutura judiciária que
viabiliza a tutela dos mesmos. Levar a sério os direitos
significaria, então, levar a sério a escassez dos recursos.
Em
que pese a crítica acima mencionada, é notório que os direitos
positivos possuem peculiaridades que os distinguem dos negativos.
Todos demandam mobilização do Estado para que sejam assegurados, no
entanto, os direitos sociais (como direitos essencialmente positivos
que são) possuem no Estado o seu típico modo de exercício,
enquanto os direitos de liberdade veem no Poder Público um
garantidor, um assegurador desses comandos. No caso do direito à
saúde, por exemplo, a inexistência de políticas públicas
impediria, em absoluto, o gozo desse direito por parte da população,
com exceção daqueles que possuem condições de buscar a iniciativa
privada para tanto. Isso ocorre porque é da essência dessa espécie
a exigência de um agir por parte do Estado para que o direito
simplesmente exista, e não apenas para que ele seja efetivo ou mais
abrangente.
É
essa a concepção do direito à saúde, como direito de segunda
geração e como direito positivo, que será adotada na presente
obra, haja vista que o pedido da quase totalidade das ações
judiciais nessa seara envolve uma obrigação de fazer ou de dar por
parte do Estado.
Políticas
públicas podem ser entendidas, na esteira da definição proposta
por Maria Paula Dallari Bucci, como “programas de ação
governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado
e as atividades privadas, para a realização de objetivos
socialmente relevantes e politicamente determinados”17.
Conforme
restou estabelecido, o direito fundamental à saúde é concretizado
mediante ação positiva do Estado, que, na prática, toma a forma de
políticas públicas. Os arts. 196 e 197 da Constituição Federal
demonstram claramente esse fato:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Os
artigos 198 e seguintes da Constituição passam, por sua vez, a
tratar do Sistema Único de Saúde (SUS), dentro do qual tais
políticas deverão ser prestadas.
Do
ponto de vista federativo, a Constituição atribuiu competência
para legislar sobre a proteção e defesa da saúde concorrentemente
à União, aos estados e aos municípios (art. 24, XII e 30, II). À
União cabe o estabelecimento de normas gerais (art. 24, §1º); aos
estados, suplementar a legislação federal (art. 24, §2º); e aos
municípios, legislar sobre assuntos locais, podendo suplementar a
legislação federal e estadual, no que couber (art. 30, I e II). No
que diz respeito ao aspecto administrativo, a Carta Magna estabeleceu
competência comum aos três entes federativos para formular e
executar políticas de saúde (art. 23, II).
O
fato de todos os entes serem competentes para tratar da matéria, não
significa superposição entre eles, como se todos detivessem
atribuições irrestritas. Tal fato, certamente acarretaria
desorganização e ineficiência na prestação dos serviços de
saúde. Por essa razão, o art. 23, parágrafo único da CF prevê
que deve haver cooperação entre os entes, tendo em vista o
“equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito
nacional”.
Nesse
viés, o âmbito legislativo é o espaço adequado para estabelecer
as competências administrativas de cada ente, assim como para prever
as políticas públicas de saúde que serão prestadas à sociedade.
Em setembro de 1990, com esse intento, foi aprovada a Lei Orgânica
da Saúde (lei 8.080/90), responsável por estruturar o SUS e prever
a sua forma de organização e funcionamento.
A
lei 8.080/90 procurou definir o que cabe a cada ente federativo na
matéria. À direção nacional do SUS, compete “prestar cooperação
técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional”
(art. 16, XIII), devendo “promover a descentralização para as
Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de
saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal”
(art. 16, XV). À direção estadual, a Lei do SUS, em seu art. 17,
atribuiu as competências de promover a descentralização para os
Municípios dos serviços e das ações de saúde, de lhes prestar
apoio técnico e financeiro, e de executar supletivamente ações e
serviços de saúde. Quanto à direção municipal do SUS, incumbe as
tarefas de planejar, organizar, controlar, gerir e executar os
serviços públicos de saúde (art. 18, I e III).
Como
se observa, Estados e União somente devem executar diretamente
políticas de saúde de modo supletivo, suprindo eventuais ausências
dos Municípios. Trata-se de decorrência do princípio da
descentralização administrativa (art. 198, I da CF).
Quanto
aos serviços a serem oferecidos pelo SUS, a lei também disciplina a
matéria, com fulcro no princípio da evidência científica e do
melhor custo-benefício possível. É o que se nota do art. 19-Q,
§2º:
Art. 19-Q. A incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.
§ 2o O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS levará em consideração, necessariamente:I - as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso;
II - a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível.
Veja-se
que o objetivo do presente tópico não é esgotar a análise da lei
8.080/90, mas apenas demonstrar que a efetivação do direito à
saúde se dá, necessariamente, mediante políticas públicas, que
são traçadas no âmbito legislativo e complementadas pela
Administração Pública. É esse o meio adequado para tanto, seja
pela legitimidade democrática desses atores políticos, seja pela
visão holística que eles possuem com relação ao sistema nacional
de saúde e às carências da população.
O
Sistema Único de Saúde é pensado como um sistema integrado, com
uma rede regionalizada e hierarquizada (art. 198 da CF), com
atribuições delimitadas, segundo princípios pré-estabelecidos,
com o intento de assegurar, na maior medida possível, saúde à
população de forma universal.
Seria
possível, então, pleitear judicialmente determinada prestação no
campo do direito à saúde? Seria possível exigir do Poder Público
que garantisse determinado tratamento ou certo medicamento, mesmo que
de forma contrária ao quanto estabelecido legal e
administrativamente? É dizer, o direito à saúde, tal qual definido
anteriormente, pode ser considerado um direito subjetivo, exigível
em qualquer medida por parte do particular? É o que restará a
abordado no tópico seguinte.
Historicamente,
é possível observar uma evolução no que se refere à
concretização dos Direitos Sociais. De início, partindo da ideia
de separação de poderes, os direitos sociais eram tidos como uma
questão interna aos órgãos políticos do Estado, os quais, a
partir de razões pragmáticas, estabeleciam a lista de prioridades
internas a esses direitos, bem como os modos e formas de sua
concretização. Assim, tradicionalmente, os direitos sociais são
entendidos como normas programáticas, normas de baixa efetividade,
que estão dentro do campo exclusivo de conformação do legislador e
do Administrador público.
Fonte:Internet.
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Posteriormente,
as normas sobre tais direitos continuaram a ser classificadas como
programáticas, mas com a força mínima reconhecida para impedir a
atuação dos Poderes Públicos em desconformidade à previsão
normativa constitucional. Isso porque, segundo essa concepção, as
normas-programa prescrevem a realização, por parte do Estado, de
determinados fins e tarefas, os quais não representam meras
recomendações ou preceitos morais, mas um dever de agir.18
Essa
visão clássica de norma programática deve ser prontamente
afastada. Conceber os direitos sociais como tais implica deixá-los
praticamente desprotegidos diante das omissões estatais, o que não
se compatibiliza nem com o texto constitucional, que consagrou a
aplicabilidade imediata de todos os direitos fundamentais (art. 5º,
§1º), nem com a importância destes na vida das pessoas.
Dessa
forma, na esteira dos ensinamentos de Daniel Sarmento, surgem três
vertentes, na busca por uma delimitação dos direitos sociais, para
além da sua concepção como normas programáticas.19
A
primeira delas é a tese dos direitos sociais como direitos não
subjetivos. Trata-se de teoria encampada por Fábio Konder
Comparato20,
segundo o qual os direitos sociais não contariam com uma dimensão
subjetiva, não ensejando a exigibilidade de quaisquer prestações
positivas, mas tão somente o controle judicial de razoabilidade das
políticas implementadas para realiza-los. Essa tese mostra-se,
entretanto, insuficiente, por não proporcionar aos titulares desses
direitos uma proteção adequada. Além disso, apresenta-se
equivocada, pois, se os direitos sociais são autênticos direitos
fundamentais, eles possuem titulares e giram em torno da pessoa
humana, razão pela qual parece errônea a posição que lhe nega
dimensão subjetiva.
A
segunda tese é a dos direitos sociais como direitos subjetivos
definitivos21,
cuja consequência seria a ampla e irrestrita possibilidade de se
exigir qualquer provimento relacionado à matéria, independentemente
do grau e da razoabilidade da pretensão.
A
ideia dos direitos sociais como direitos subjetivos plenos pode ser
observada em recente decisão do Supremo Tribunal Federal.
O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA.- O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.- O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.22
Essa
tese vai além da mera perspectiva das normas programáticas, mas
peca pelo excesso, na medida em que simplesmente desconsidera
aspectos de ordem financeira e orçamentária, bem como fecha os
olhos à primazia do legislador para decidir acerca das prioridades
do Estado Democrático.
Com
efeito, tendo-se em mente que a efetivação dos direitos depende de
meios econômicos, financiados pelos contribuintes e administrados
pelo Estado, alcança-se a conclusão lógica da inexistência de
direitos subjetivos absolutos, uma vez que, nada que custa dinheiro
pode ser absoluto. Portanto, efetivar direitos implica,
inexoravelmente, realizar escolhas de alocação de recursos, de
maneira que alguns direitos serão concretizados, enquanto outros
não. Na realização dessas escolhas políticas, deve-se assegurar
primazia ao administrador e ao legislador, tema que será abordado
com maior profundidade mais à frente.
Por
fim, resta a última corrente, a tese dos direitos sociais como
direitos subjetivos prima
facie.
Esse modelo é defendido Daniel Sarmento23,
que cita renomados doutrinadores adeptos do mesmo pensamento, como
Robert Alexy, Martin Borowsky, Ingo Wlfgang Sarlet, Carlos Bernal
Pulido, Miguel Carbonell e Paulo Gilberto Cogo Leivas, dentre outros.
De acordo com a tese, os direitos sociais são direitos subjetivos,
mas que possuem natureza principiológica, sujeitando-se ao processo
de ponderação no caso concreto. Dessa forma, defende-se que os
direitos sociais possuem a estrutura de princípios, e não de
regras.
Para
que se entenda, de forma apropriada, a relevância dessa constatação
cumpre diferenciar essas duas espécies de norma jurídica, segundo a
teoria de Robert Alexy24,
inspirado em Ronald Dworkin25.
Para
Alexy, o principal critério diferenciador entre princípios e regras
é o modo de aplicação26
de ambos. Regras se aplicam na modalidade tudo ou nada: ocorrendo o
fato descrito em seu dispositivo ela deverá incidir, produzindo o
efeito previsto. Se não for aplicada à sua hipótese de incidência,
a norma estará sendo violada. Não há maior margem para elaboração
teórica ou valoração por parte do intérprete, ao qual caberá
aplicar a regra mediante subsunção. Por isso, diz-se que as regras
são mandados definitivos.
Os
princípios, por outro lado, não são mandamentos definitivos, mas
de otimização; são normas que determinam que algo seja realizado
na maior medida do possível, de acordo com as possibilidades fáticas
e jurídicas do caso concreto. Apresentam, portanto, obrigações
prima facie,
na medida em que podem ser superados em razão de outros princípios;
o que difere da natureza de obrigações absolutas das regras.
Nesses
termos, conforme Virgílio Afonso da Silva:
Se um direito é garantido por uma norma que tenha a estrutura de uma regra, esse direito é definitivo e deverá ser realizado totalmente, caso a regra seja aplicável ao caso concreto (exceto, como já citado, se existir uma cláusula de exceção). No caso dos princípios, não se pode falar de realização total daquilo que se exige. Ao contrário: em geral essa realização é apenas parcial. Isso porque no caso dos princípios há uma diferença entre aquilo que é garantido (ou imposto) prima facie e aquilo que é garantido (ou imposto) definitivamente. Pode-se dizer que há um longo caminho entre um (o prima facie) e outro (o definitivo).27
Ocorre
que, em uma ordem jurídica pluralista, a Constituição abriga
princípios que apontam em direções diversas, gerando tensões e
eventuais colisões entre eles. Diante de uma colisão entre
princípios, deve-se dar prevalência àquele que tenha, no caso
concreto, maior peso relativo, sem que isso signifique a invalidação
do princípio compreendido como de peso menor. É o que Alexy chama
de lei da ponderação: “quanto maior é o grau de não satisfação
ou de afetação de um princípio, tanto maior deve ser a importância
da satisfação do outro”.28
No
que se refere ao direito à saúde, a ponderação envolve de um lado
o direito social e de outro as diversas condicionantes e as inúmeras
limitações fáticas que circundam a matéria, tais como o princípio
democrático, a reserva do possível, a separação dos poderes,
dentre outros. Dessa forma, o deferimento ou não da medida deve
ocorrer de acordo com o caso concreto, segundo as provas dos autos,
em um juízo de proporcionalidade, que envolve a aferição acerca da
exigibilidade da medida e da possibilidade do Estado em efetivá-la.
A
solução acima referida é profundamente comprometida com a
efetivação dos direitos sociais, mas leva em conta também todas as
dificuldades fáticas e jurídicas envolvidas nesse processo. Não se
trata, portanto, de solução utópica ou de mecanismo que ignore a
realidade. A realidade estará sempre presente, não sendo admissível
que o aplicador do Direito se furte de apreciá-la.
Veja-se,
entretanto, que falar em ponderação e deixar a questão a ser
decidida discricionariamente pelos magistrados espalhados por todo o
país não significa solucionar a questão, mas agravá-la. Tal
concepção daria causa a casuísmos sem medida e agravaria a
situação já preocupante de insegurança jurídica no nosso país.
É imprescindível, portanto, esclarecer como e em que medida a
decisão judicial em matéria envolvendo políticas públicas de
saúde devem ser tomadas. É o que será analisado nos próximos
capítulos.
Fonte:Internet.
|
Conforme
restou esclarecido, os direitos sociais constituem direitos
subjetivos prima
facie, nos termos
aqui defendidos, de modo que sua exigibilidade está sujeita a um
juízo de ponderação a ser realizado no caso concreto. Dois
critérios essenciais a serem examinados na referida ponderação são
a reserva do possível e o mínimo existencial. É o que se passa a
expor.
A
cláusula da reserva do possível surge a partir da constatação já
enunciada de que a efetivação de qualquer direito demanda um custo
por parte do Estado. Diante das infinitas necessidades da população
e da escassez de recursos públicos, fica evidente a inexistência de
direitos absolutos e a incapacidade de o Estado em proporcionar a
todos e de forma integral toda a gama de direitos sociais.
Esse
argumento tem sido, constantemente, invocado pelos entes públicos
para eximirem-se de qualquer obrigação relacionada à
judicialização de políticas públicas, notadamente na área da
saúde. No mais das vezes, entretanto, isso é feito de maneira
genérica, como se a reserva do possível fosse capaz, por si só, de
isentar o Estado do cumprimento das obrigações constitucionalmente
determinadas a ele.
Cumpre,
aqui, traçar um panorama adequado acerca desse importante limitante,
a reserva do possível, a qual não pode simplesmente ser ignorada
pelos juízes em prol da efetivação dos direitos sociais nem
abstratamente invocada pelos advogados públicos a fim de eximir o
Estado de qualquer responsabilidade.
A
origem cláusula da reserva do possível remota ao célebre caso
julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão “numerus
cláusus”. Na ocasião,
entendeu-se que o direito de acesso ao ensino superior não poderia
ser absoluto, não sendo razoável admitir-se a entrada de todos os
estudantes interessados em determinado curso. Fixou-se que o Estado
deve assegurar apenas as exigências individuais que estejam dentro
de um padrão de razoabilidade, de acordo com os recursos existentes
e com a máxima efetividade possível ao direito fundamental.29
Nesse
contexto, preleciona Ingo Sarlet que:
A prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o estado de recursos e tendo poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável.30
Para
Gomes Canotilho, a reserva do possível significa que a realização
dos direitos sociais se caracteriza:
a) pela gradatividade ou gradualidade na sua realização; b) pela dependência financeira do orçamento público; c) pela tendencial liberdade de conformação pelo legislador em relação às políticas públicas a serem assumidas (as políticas de realização destes direitos); d) pela insuscetibilidade de controle jurisdicional dos programas político-legislativos, a não ser quando estes se mostram em clara contradição com as normas constitucionais ou quando manifestamente desarrazoados.31
Nas
palavras de Ana Paula Barcellos:
A limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. 32
Na
jurisdição constitucional brasileira, o conceito foi ventilado em
obter dictum, no bojo de decisão monocrática do Ministro
Celso de Mello, na ADPF 45. Segundo o Ministro:
Os condicionamentos impostos pela cláusula da ‘reserva do possível’, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre onerosa – traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado,, (1) a razoabilidade de pretensão individual-social deduzida em face do Poder Público, e, de outro (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. 33
Porém,
nesta mesma decisão o Ministro Celso Mello consignou que:
A cláusula da reserva do possível – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido essencial de fundamentalidade.34
Daniel
Sarmento35,
com esteio em Ingo Sarlet36,
traz importante distinção que permite delimitar os contornos da
cláusula da reserva do possível. Para os autores, a ideia de
reserva do possível é dividida em dois componentes, um fático e
outro jurídico. O primeiro relaciona-se com a efetiva existência de
recursos disponíveis, enquanto o segundo está ligada à autorização
orçamentária para o Estado incorrer nos respectivos custos.
Filia-se,
aqui, plenamente, com a orientação fixada por Daniel Sarmento e por
Ingo Sarlet, razão pela qual será abordada em minúcias a
diferenciação entre reserva do possível fática e reserva do
possível jurídica.
A
respeito da reserva do possível no plano fático, existe certa
controvérsia a respeito da sua compreensão. Primeiramente,
poder-se-ia entendê-la de maneira extremada, no sentido de que
apenas a ausência absoluta de recursos, efetivamente demonstrada nos
autos do processo, seria capaz de afastar a responsabilidade do ente
no caso concreto. Essa corrente não parece correta e deve ser
descartada, haja vista que ignora a necessidade de o Poder Público
atender a inúmeras outras demandas onerosas, igualmente alicerçadas
pela Constituição como direitos fundamentais. Posicionamento desse
jaez permitiria que, no escopo de atender ao direito de uma pessoa,
os direitos e interesses de toda a coletividade fossem prejudicados.
A
segunda possibilidade de se conceber a reserva do possível fática é
com base na avaliação acerca do impacto econômico que a pretensão
individual do titular do direito fundamental pode causar sobre o
universo de recursos públicos existente. Tal exegese não gera
efeitos tão radicais quanto a primeira, considerando que existe a
possibilidade de denegação do pleito sempre que os seus custos
acarretarem um impacto muito elevado sobre as contas públicos.
Entretanto ela peca por deixar de levar em consideração a isonomia
e a igualdade como corolário da reserva do possível. Isso porque
essa concepção toma por base o custo representado apenas pela
prestação eventualmente concedida ao autor da ação, de forma que,
por mais custosa que ela seja, dificilmente será elevada o
suficiente para abalar os recursos orçamentários das entidades
federativas. Ocorre que o Estado não deve conceder a um indivíduo
aquilo que ele não tenha condições de oferecer a todos que se
encontrem na mesma situação. Essa é uma exigência fundamental
imposta pelo princípio da isonomia que não pode ser ignorada.
Consiste na base do entendimento escorreito acerca da reserva do
possível.
Dessa
forma, na esteira da lição de Daniel Sarmento, entende-se que “a
reserva do possível fática deve ser entendida como a razoabilidade
da universalização da prestação exigida, considerando os recursos
efetivamente existentes”37.
Por esse critério, por exemplo, diante da postulação de
determinado tratamento não previsto pelo SUS, a ser realizado no
exterior, com o custo de considerável quantia de recursos públicos,
o julgador não deve indagar se essa prestação, autonomamente,
seria capaz de afetar de maneira substancial o orçamento do Estado,
mas se seria razoável conceder esse mesmo benefício a todos aqueles
que se encontram nessa mesma situação, levando em conta as
possibilidades financeiras do ente. Conforme Sarmento, “trata-se,
em suma, de avaliar a legitimidade constitucional de uma omissão em
matéria de política pública, o que demanda um olhar focado não só
na árvore, mas em toda a floresta”38.
Esse
argumento, inclusive, é rotineiramente levantado nas peças de
defesa elaboradas pelos advogados públicos, sob a alcunha de “efeito
multiplicador”. Argumenta-se que o deferimento da pretensão
provocaria a proliferação de demandas com esse mesmo pedido, o que
inviabilizaria o atendimento pelo ente político de todas elas.
Judicialmente,
o STJ já rechaçou referido argumento. In verbis:
(...) não há como concluir que o fornecimento do medicamento a uma única paciente possa causar lesão de consequências significativas e desastrosas à economia do Estado de São Paulo. Destaco, ainda, que o efeito multiplicador alegado como justificativa ao pedido de suspensão é meramente hipotético, não tendo a postulante trazido qualquer indício de que, animadas pela decisão recorrida, tenham sido ajuizadas outras ações com igual pretensão.39
Não
se pode concordar com a decisão judicial acima transcrita. Não se
trata de demonstrar que o “efeito multiplicador” ocorreu, que
houve proliferação de demandas com o mesmo objeto e que, com isso,
tornou-se impossível o adimplemento, pelo Estado, de todas elas. Na
verdade, o critério da universalização para fins de aferir a
reserva do possível fática está ligada ao princípio da isonomia e
à ideia de Estado Democrático de Direito. Está relacionada à
fundamentação de uma decisão, a um critério indispensável para
que o pronunciamento judicial seja efetivamente justo. Se o
magistrado concede determinada pretensão, mesmo sabendo que seria
inviável concedê-la a todos que se encontrem na mesma situação,
em razão do simples fato de que nem todos irão judicializar a
matéria, estará ele agindo contrariamente a qualquer noção de
justiça e de igualdade, estará violando a lógica argumentativa e a
fundamentação adequada da decisão.
Não
se quer dizer, com isso, que as decisões judiciais nas matérias
envolvendo direito à saúde não devam analisar as singularidades do
caso concreto, ou que o juiz deva considerar a parte autora como mera
parte de um todo, como se fossem meros números, abstraindo de suas
necessidades e sofrimentos. Pelo contrário, a análise pormenorizada
do caso sub judice
é uma obrigação incontornável do magistrado, vocacionado a dizer
o direito no caso concreto. O que se pretende salientar é apenas
que, em face do princípio da isonomia, pessoas que estiverem na
mesma situação devem receber o mesmo tratamento, sob pena de
institucionalizar-se o tratamento desigual e discriminatório,
prejudicando aqueles que não podem ou não querem pleitear seus
direitos judicialmente. Nesse contexto, não se pode exigir do Estado
que forneça algo a um indivíduo que não seja possível conceder a
todos os que estejam na mesma situação.
Entendimento
contrário findaria por privilegiar principalmente aqueles que
possuem condições culturais, sociais e financeiras de litigar
judicialmente contra o Estado. Ao fim e ao cabo, privilegiaria os
mais abastados, em detrimento daqueles que mais necessitam das
prestações estatais.
Cabe
ressaltar, entretanto, que, do ponto de vista processual, a reserva
do possível é matéria de defesa, de forma que cabe ao advogado
público suscitá-la no processo, demonstrando que a concessão de
determinada prestação esbarra na reserva do possível, não sendo
razoável exigir-se do Estado que ele preste referido serviço a toda
a população que se encontra na situação hipotética. Não basta,
portanto, que o Estado invoque genericamente a reserva do possível
para se opor à concessão judicial de prestações sociais, como,
infelizmente, sói acontecer na prática.
Destarte,
pode-se concluir que a reserva do possível é um importante
limitador da concessão de pretensões que envolvam judicialização
de políticas públicas na área da saúde. Não se mostra razoável
nem adequado que o magistrado simplesmente desconsidere essa
limitante, sob o argumento de que o direito à saúde é fundamental
e inafastável, nem cabe ao Estado defender-se da demanda arguindo
abstratamente essa cláusula. Na verdade, a reserva do possível
fática deve ser cuidadosamente apreciada no bojo do respectivo
processo, segundo uma análise universalizante, indagando o julgador
acerca da razoabilidade da exigência e da possibilidade financeira
do Estado de oferecer tal prestação a toda a população que dela
necessite.
Ilustração de Luke Hillestad. Fonte: Internet. |
A
reserva do possível, na sua faceta jurídica, identifica-se com a
existência de fundamento legal para que o Estado incorra nos gastos
necessários à satisfação do direito social pleiteado. Diz
respeito, em suma, à existência de previsão orçamentária para a
realização da referida despesa, tendo em vista o princípio da
legalidade e a obrigação legal e constitucional de que todos os
gastos do Governo estejam previstos no orçamento.
Com
efeito, assim dispõe o art. 167, I da CF:
Art. 167, I: São vedados: o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual.
Os
arts. 3º e 4º da lei 4.320, por sua vez, consagram o princípio da
universalidade, segundo o qual o orçamento deve conter todas as
receitas e todas as despesas da Administração. In verbis:
Art. 3º: A Lei de Orçamento compreenderá todas as receitas, inclusive as de operações de crédito autorizadas em lei.Art. 4º: A Lei de Orçamento compreenderá todas as despesas próprias dos órgãos do Governo e da Administração centralizada, ou que, por intermédio deles se devam realizar, observado o disposto no art. 2º.
Já
o art. 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) enuncia os
requisitos para que haja a criação, expansão ou aperfeiçoamento
de ação governamental que acarrete aumento de despesa.
Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de:I - estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes;II - declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.
Diante
desse quadro, há corrente que defende a absoluta impossibilidade de
realização de gastos para a satisfação de direitos sociais sem
que haja previsão orçamentária para tanto, sob pena de afetar a
responsabilidade fiscal e o adimplemento de diversos outros deveres
estatais, que já se encontram previstos no respectivo orçamento.
De
outra banda, há posicionamento no sentido de que, se os direitos
sociais são fundamentais, seria um contra-senso permitir que o
legislador frustrasse a possibilidade de efetivação desses
direitos, ao não alocar no orçamento as verbas necessárias para a
sua fruição. Dessa forma, seria irrelevante a invocação da
ausência de previsão orçamentária para fins de eximir o Estado da
sua responsabilidade.
O
STF já encampou a segunda tese, em julgamento de lavra do Ministro
Celso de Mello. Veja-se:
A falta de previsão orçamentária não deve preocupar o juiz, mas apenas o administrador. (...) Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde ou fazer prevalecer contra esta prerrogativa fundamental um interesse financeiro e secundário do Estado, (...) por razões de ordem ética-jurídica impõe ao julgador uma só e possível opção.40
Entende-se,
aqui, que existe parcela de razão nas duas teses. Não se pode, no
equacionamento da questão, simplesmente ignorar o relevante fato de
que não existe previsão orçamentária para o cumprimento da
obrigação, nem a prioridade do legislador democrático na
realização das escolhas políticas sobre gastos públicos. Por
outro lado, não é possível, também, considerar essa uma barreira
insuperável, sob pena de violação à força vinculante da
Constituição, em retrocesso ao tempo em que se pregava a soberania
do Parlamento. Existem direitos mínimos que, de fato, não podem ser
afastados em face da inexistência de previsão orçamentária.
A
solução se dará no campo da ponderação, conforme já adiantado
em capítulo anterior. O magistrado deve, incialmente, adotar uma
posição de deferência em face das decisões tomadas pelo Poder
Legislativo juntamente com o Executivo, diante da representatividade
democrática desses órgãos e da maior capacidade institucional
deles para a tomada dessas decisões. Todavia, diante de uma situação
de clara violação aos direitos fundamentais do indivíduo, em sendo
a pretensão razoável, bem como estando dentro dos limites da
reserva do possível fática (conforme exposto), será possível o
deferimento da medida, ainda que inexista previsão orçamentária
para tanto.
Vale
destacar que é recomendável que o órgão julgador priorize, sempre
que possível, a determinação de inclusão da matéria no orçamento
para o próximo exercício, em detrimento da simples imposição de
cumprimento da medida sem a correspondente previsão legal, mormente
em situações que envolvam demandas de caráter coletivo.
Nesse
mesmo viés é a lição de Ada Pellegrini:
Como a lei orçamentária não é vinculante, permitindo a transposição de verbas, o Judiciário também determinará, em caso de descumprimento do orçamento, a obrigação de fazer consistente na implementação de determinada política pública (a construção de uma escola ou de um hospital, por exemplo). Desse modo, frequentemente, a “reserva do possível” pode levar o Judiciário à condenação da Administração a duas obrigações de fazer: a inclusão no orçamento da verba necessária ao implemento da obrigação e a obrigação de aplicar a verba para o adimplemento da obrigação.41
Vê-se,
portanto, que a reserva do possível jurídica é um fator relevante
na ponderação a ser realizada no caso concreto, mas está longe de
ser definitivo, podendo, eventualmente, ser superado, de acordo com
as peculiaridades da situação.
A
ideia de um mínimo existencial consiste em assegurar a todo
ser-humano um padrão mínimo, uma gama mínima de direitos para que
viva com dignidade. Nesse sentido, há quem realize a distinção
entre mínimo existencial e mínimo vital, afirmando que o segundo
conceito é mais restrito, referindo-se apenas à proteção de
condições para a garantia da vida humana, sem se preocupar com a
qualidade e a dignidade dessa vida.42
Tal diferenciação é realizada, inclusive, pela jurisprudência,
que ressalta a garantia de um mínimo existencial, e não apenas
vital.
ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL – ACESSO À CRECHE AOS MENORES DE ZERO A SEIS ANOS – DIREITO SUBJETIVO – RESERVA DO POSSÍVEL – TEORIZAÇÃO E CABIMENTO – IMPOSSIBILIDADE DE ARGUIÇÃO COMO TESE ABSTRATA DE DEFESA – ESCASSEZ DE RECURSOS COMO O RESULTADO DE UMA DECISÃO POLÍTICA – PRIORIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS – CONTEÚDO DO MÍNIMO EXISTENCIAL – ESSENCIALIDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO – PRECEDENTES DO STF E STJ. (...) 6. O mínimo existencial não se resume ao mínimo vital, ou seja, o mínimo para se viver. O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também as condições socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência, asseguram ao indivíduo um mínimo de inserção na "vida" social. (...)43
Segundo
Ingo Sarlet e Mariana Figueiredo, o primeiro jurista a defender um
direito subjetivo a garantias afirmativas de um mínimo existencial
foi o alemão Otto Bachof, o qual considerou, em meados de 1950 que:
(...) o princípio da dignidade da pessoa humana (...) não reclama apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada. Por esta razão, o direito à vida e integridade corporal (...) não pode ser concebido meramente como proibição de destruição da existência, isto é, como direito de defesa, impondo, ao revés, também uma postura ativa no sentido de garantir a vida.44
Cogo
Leivas45,
por outro lado, aponta como sendo um julgado de 1950 o marco em
termos de formação de um precedente sobre o tema na Alemanha. Para
Daniel Sarmento46,
a noção de um direito ao mínimo existencial surgiu em uma decisão
do Tribunal Federal Administrativo alemão prolatada em 1953,
incorporando-se ao Tribunal Constitucional posteriormente, a partir
da conjugação dos princípios da dignidade da pessoa humana, da
liberdade material e do Estado Social, consagrados na Lei fundamental
germânica.
No
que se refere ao direito brasileiro, o pioneiro a adotar a ideia de
mínimo existencial foi Ricardo Lobo Torres, que defende o direito a
condições mínimas para uma existência humana digna, exigindo
prestações positivas por parte do Estado para tanto.47
Na
jurisprudência brasileira, a decisão paradigmática, que abordou
expressamente o conceito de mínimo existencial, foi na ADPF 45.
Outro interessante exemplo, que recorrentemente é citado na doutrina
é o RE 410.715/SP. Ambos envolvem o direito a educação como mínimo
existencial à luz da dignidade da pessoa humana.
Arguição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da "reserva do possível". Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do "mínimo existencial". Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração). (grifou-se).48
O
fundamento para a existência de uma garantia ao mínimo existencial
no direito brasileiro, segundo Daniel Sarmento, está alicerçado em
três linhas de argumentação, sendo duas de cunho instrumental e
uma de viés não instrumental.
49
O
primeiro argumento é o da liberdade material, corrente que tem
bastante prestígio dentre os adeptos do liberalismo igualitário;
por esse viés, o mínimo existencial seria uma exigência necessária
para a garantia de uma liberdade real (e não apenas formal), na
medida em que, sem o atendimento de certas condições materiais
básicas esvazia-se a liberdade, pela impossibilidade concreta do seu
exercício.
O
segundo argumento de ordem instrumental é o argumento democrático,
que se baseia na ideia de que a democracia não se esgota no
predomínio da vontade da maioria, sendo indispensável a garantia de
direitos básicos que viabilizem a participação dos cidadãos no
espaço público, sem o que restaria comprometida a capacidade real
de participar das deliberações da sociedade.
Fonte:Internet.
|
Por
fim, o argumento não instrumental defende que o atendimento das
necessidades humanas mais básicas é uma exigência autônoma da
justiça, um fim em si mesmo, e não um meio para o atingimento de
outros objetivos, como a garantia da liberdade ou a promoção da
democracia. Este, realmente, parece ser o argumento mais forte, tendo
em vista que a compreensão de justiça envolve, necessariamente, a
obrigação do Estado e da sociedade de combater o sofrimento e a
miséria, como fins em si mesmos, o que é feito mediante a garantia
de condições mínimas de vida para os necessitados. Nesse contexto,
não se leva em conta a potencial participação do indivíduo nas
decisões da sociedade ou se sua liberdade será substancialmente
exercida; a garantia do mínimo existencial deve ser assegurada
simplesmente para garantir uma vida digna ao ser-humano.
Evidentemente, os argumentos instrumentais reforçam a necessidade de
garantia do mínimo existencial, mas é este argumento, de natureza
não instrumental, que é a verdadeira base filosófica para tanto.
Do
ponto de vista jurídico, a melhor solução para localizar o
fundamento normativo do mínimo existencial é no princípio da
dignidade da pessoa humana, na medida em que tal princípio apela
tanto à liberdade material, como à democracia e ao atendimento de
necessidades básicas das pessoas50.
Nesse mesmo sentido, também se posiciona Gilmar Ferreira Mendes51.
O
mínimo existencial é direito protegido negativamente contra a
intervenção do Estado e, ao mesmo tempo, protegido positivamente
pelas prestações estatais.
52
É dizer, em sua dimensão negativa, o mínimo existencial opera como
um limite, impedindo a prática de atos pelo Estado ou por
particulares que subtraiam do indivíduo as condições materiais
indispensáveis para uma vida digna. Já na sua vertente positiva,
ele envolve um conjunto essencial de direitos prestacionais.
No
que concerne ao aspecto positivo, não há consenso acerca das
prestações que compõem o dito conjunto essencial de prestações.
Ana Paula Barcellos defende a existência do seguinte elenco de
prestações compreendidas no mínio existencial, que poderiam ser
exigidos judicialmente, sem a necessária intermediação da lei:
educação fundamental, saúde básica, assistência em caso de
necessidade e acesso à saúde.53
Dessa
forma, o mínimo existencial seria uma obrigação do Estado,
independentemente de sua capacidade orçamentária, enquanto
prestações não essenciais deveriam ser oferecidas pelo Estado de
acordo com a sua possibilidade econômica.
Entende-se,
todavia, como equivocada a corrente que prega o estabelecimento
prévio, em abstrato, de rol delimitador do que seja direito mínimo,
a ser assegurado pelo Estado independentemente de lei, ignorando a
condição específica do titular do direito. Isso porque o mínimo
existencial, na sua esfera positiva, deve ser compreendido como um
conjunto de prestações que devem ser oferecidas pelo Estado, sob
pena de violação da dignidade da pessoa humana, na medida em que,
sem tal prestação, não se poderia conceber sequer uma existência
minimamente razoável e digna. Ocorre que a necessidade desse
conjunto de prestações irá variar de acordo com o titular do
direito.
A
título de exemplo, pode-se imaginar a situação de dois indivíduos
que possuem a mesma doença e necessitem do mesmo tratamento médico,
mas apenas um deles possui os meios para custeá-lo,
independentemente do Estado. Quanto a este (o que possui recursos
suficientes para tanto), não se pode considerar que a prestação
pelo Estado do referido tratamento médico esteja dentro do mínimo
existencial a ser garantido. Apenas no caso daquele que não pode
realizá-lo com recursos próprios admite-se a obrigação do Estado
de oferecê-lo independentemente de lei, sob pena de violação ao
mínimo essencial.
É
imprescindível analisar o caso concreto para que se possa determinar
se certa pretensão está, de fato, dentro do rol de direitos básicos
a serem inexoravelmente prestados pelo Estado. Na situação acima
narrada, garantir a ambos o mesmo direito seria tutelar o direito à
saúde de um o direito patrimonial a outro, tendo em vista que este
não ficaria refém de tratamento algum, já que possuiria os meios
necessários para custeá-lo.
Nesse
mesmo sentido, preleciona Daniel Sarmento:
Por isso, não concordo com a argumentação aduzida em algumas decisões judiciais em matéria de saúde, no sentido de que, tendo em vista a universalidade deste direito, seria irrelevante analisar se o autor da ação possui ou não os recursos necessários à aquisição da prestação demandada do Estado. Este dado me parece fundamental, pois, num caso, o sacrifício eventualmente imposto pela denegação da pretensão repercute tão-somente sobre o patrimônio do paciente, enquanto no outro pode estar em jogo a sua própria vida. Temo que este tipo de raciocínio, num contexto de acesso não igualitário à Justiça, possa legitimar um uso enviesado dos direitos sociais que, de instrumentos de emancipação em favor dos mais fracos, acabem se transformando em artifícios retóricos manejados pelas classes favorecidas.54
Criticável,
nesse viés, a decisão exarada pelo STJ em que se entendeu
irrelevante para decisão de um caso em que um paciente demandava o
fornecimento de medicamento não contemplado na lista do SUS, o fato
de se tratar de um Delegado de Polícia, com rendimentos muito
superiores à média nacional.
CONSTITUCIONAL. RECURSO ESPECIAL. SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PACIENTE COM HEPATITE "C". DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. (...) 2. O Sistema Único de Saúde-SUS visa a integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna. 3. O direito à vida e à disseminação das desigualdades impõe o fornecimento pelo Estado do tratamento compatível à doença adquirida no exercício da função. Efetivação da cláusula pétrea constitucional. (...)55
Portanto,
defende-se que, a fim de delimitar o rol de direitos ao mínimo
existencial, urge analisar as particularidades que envolvem o titular
da ação. É preciso investigar se a prestação por parte do
Estado, na situação concreta, é realmente indispensável para a
garantia de uma existência digna do indivíduo, levando em
consideração as possibilidades financeiras do próprio autor.
No
aspecto prático, qual seria, então, a implicação de se reconhecer
que determinada prestação integra o mínimo existencial? Restaria,
nesse caso, infrutífera qualquer alegação a respeito da reserva do
possível? Seria tal constatação imprescindível para a tutela do
direito social à saúde?
Para
Ingo Wolfgang Sarlet56,
o direito ao mínimo existencial é absoluto, não se sujeitando à
reserva do possível, corrente que é abonada pela jurisprudência do
STF. A título ilustrativo, recente julgamento dessa Corte:
E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (LEI Nº 12.322/2010) – MANUTENÇÃO DE REDE DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – DEVER ESTATAL RESULTANTE DE NORMA CONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO MUNICÍPIO – DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA ESTATAL (RTJ 183/818-819) – COMPORTAMENTO QUE TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL DA REPÚBLICA (RTJ 185/794-796) – A QUESTÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL: RECONHECIMENTO DE SUA INAPLICABILIDADE, SEMPRE QUE A INVOCAÇÃO DESSA CLÁUSULA PUDER COMPROMETER O NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191-197) – O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO – A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO PODER PÚBLICO – A TEORIA DA “RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES” (OU DA “LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES”) – CARÁTER COGENTE E VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDO PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS, ESPECIALMENTE NA ÁREA DA SAÚDE (CF, ARTS. 6º, 196 E 197) – A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” – A COLMATAÇÃO DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL FUNDADA EM COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA CRIAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO DIREITO – CONTROLE JURISDICIONAL DE LEGITIMIDADE DA OMISSÃO DO PODER PÚBLICO: ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL QUE SE JUSTIFICA PELA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE CERTOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS (PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL, PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL, VEDAÇÃO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO) – DOUTRINA – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219-1220) – EXISTÊNCIA, NO CASO EM EXAME, DE RELEVANTE INTERESSE SOCIAL – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.57 (grifou-se).
Não
parece, entretanto, ser esse o posicionamento mais responsável e
correto, levando em consideração as condições fáticas da
sociedade brasileira. Infelizmente, em países subdesenvolvidos, onde
a desigualdade social impera, nem sempre é possível assegurar a
todos as condições materiais para uma vida verdadeiramente digna.
Ignorar esse fato e defender a obrigação absoluta do Estado pode
confortar o coração, mas não mudará a realidade. Daniel Sarmento
exemplifica bem a situação ao mencionar o caso emblemático do
salário mínimo (art. 7º, IV da CF). Pelo texto constitucional, ele
deveria ser suficiente para assegurar as necessidades vitais básicas
do trabalhador e de sua família, com moradia, alimentação,
educação saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e
previdência social. No entanto, é pacífico que o valor legalmente
estabelecido para tanto está longe de permitir o gozo de todos esses
direitos, não sendo suficiente para a garantia de um mínimo
existencial. Nesse cenário, seria razoável que o Poder Judiciário
reconhecesse a conjuntura como inconstitucional e passasse a
determinar que todas as empresas, assim como o INSS passassem a pagar
um salário por ele fixado, de forma a atender todos os direitos
constitucionalmente elencados? Infelizmente, não.
Não
é possível, simplesmente, duplicar ou triplicar o salário mínimo
com a finalidade de atender aos direitos assegurados
constitucionalmente, tendo em vista que a economia brasileira não
suportaria esse ônus; as consequências seriam drásticas,
ocasionando desemprego, inflação, dentre outras repercussões, a
vitimar, especialmente, os mais pobres.
Da
mesma forma, não se pode exigir do Estado o oferecimento de toda e
qualquer prestação que se considere dentro de um rol de direitos
mínimos, ignorando-se por completo aspectos orçamentários e
financeiros. Claro que, uma vez verificada a condição de mínimo
existencial do direito pleiteado, torna-se especialmente dificultoso
ao Estado eximir-se da responsabilidade de assegurá-lo. Não se
pode, entretanto, impedir, previamente e em abstrato, qualquer
discussão acerca dessas problemáticas; afinal, elas existem e não
podem ser ignoradas.
Por
outro lado, vale dizer, não se entende como correta a tese de que
apenas os direitos integrantes do mínimo essencial possam ser
judicializados. Isso porque, no que se refere aos direitos
fundamentais, deve-se perseguir sempre a máxima efetividade desses
direitos, dentro do que seja fática e juridicamente possível. Não
se pode contentar-se apenas com o mínimo. Na verdade, a matéria
será aferida no caso concreto, segundo a regra da ponderação,
conforme já enunciado, a fim de se verificar se o direito à saúde,
assegurado de forma prima
facie, pela
Constituição, deverá ser tutelado, de acordo com a situação
descrita nos autos.
Nesse
viés o mínimo existencial possui grande relevância, pois constitui
parâmetro dos mais relevantes no juízo de proporcionalidade a ser
realizado pelo julgador, de forma que, apenas em situações
excepcionalíssimas e devidamente comprovadas, deverá ser superado.
Quanto mais essencial for a necessidade material em jogo, maior será
o peso atribuído ao direito social no processo ponderativo e mais
complicado será ao Estado eximir-se da prestação. No entanto,
permanece a possibilidade de adjudicação de direitos sociais mesmo
naquilo que extrapolar o mínimo existencial, a depender da situação
concreta em litígio.
Fonte:Internet.
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Estabelecida
uma noção razoável acerca direito social à saúde, com a
conclusão de que se trata de um direito subjetivo prima
facie, bem como
assentadas as principais premissas para a realização de uma
ponderação adequada no caso concreto, resta examinar o fenômeno da
judicialização das políticas públicas e os requisitos para uma
decisão legítima nessa seara.
Conforme
já introduzido, o Brasil tem passado por uma onda crescente de
judicialização, fenômeno que, registre-se, não é peculiaridade
exclusiva nossa. Em diferentes partes do mundo, em épocas diversas,
cortes constitucionais destacaram-se como protagonistas de decisões
envolvendo questões de largo alcance político, implementação de
políticas públicas ou escolhas morais da sociedade.58
O
fenômeno da judicialização significa que algumas das questões de
larga repercussão política e social estão sendo decididas pelos
órgãos jurisdicionais, em detrimento das instâncias majoritárias:
o Poder Executivo e o Legislativo. As causas desse fato são
múltiplas e as consequências podem ter conotações positivas ou
negativas, a depender da forma e do nível como como se dá esse
ativismo judicial.
Cumpre,
aqui, investigar as causas e as consequências dessa participação
cada vez mais assaz do Poder Judiciário nos rumos do país.
Um
dos principais juristas a se dedicar ao tema é Luis Roberto Barroso,
hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Corte Constitucional
máxima do país, motivo pelo qual é imprescindível destacar suas
observações a respeito do tema.
Segundo
Barroso, a primeira grande causa da judicialização foi a
redemocratização do país, que teve como cume a Constituição de
1988. O ambiente democrático proporcionado pelo fim da ditadura
militar e pela volta da democracia reavivou a cidadania, dando maior
nível de informação e de consciência de direitos aos cidadãos.
Aliado a esse fator, houve o fortalecimento das instituições, com o
crescimento do Ministério Público, notadamente na sua atuação
além da área penal, e com a expansão nacional da Defensoria
Pública. O Poder Judiciário, por sua vez, deixou de ser um
departamento técnico especializado e se transformou em um verdadeiro
poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis,
inclusive em confronto com os outros Poderes.59
A
segunda causa foi a constitucionalização abrangente, que trouxe
para a Constituição inúmeras matérias que eram antes tratadas
apenas no plano infraconstitucional. Para Barroso, “a Carta
brasileira é analítica, ambiciosa, desconfiada do legislador”. No
momento em que uma questão é disciplinada como norma
constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão
jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial.60
Daí o crescente aumento de demandas suscitando direitos sociais, que
normalmente estariam dentro do âmbito exclusivo das políticas
públicas.
Por
fim, como última causa, encontra-se o controle de
constitucionalidade brasileiro. Um misto do sistema americano e
europeu, o modelo brasileiro congrega o controle incidental e difuso,
pelo qual qualquer juiz ou tribunal pode – no caso concreto –
deixar de aplicar uma lei por achá-la inconstitucional, e o
concentrado, por meio do qual o Supremo Tribunal Federal declara a
inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo.61
Uma
das grandes discussões travadas a respeito da mencionada
judicialização é acerca da legitimidade democrática do Poder
Judiciário para determinar um agir político por parte do Estado.
A
dificuldade contramajoritária, tese de Alexander Bickel, explica-se
em razão de o Judiciário ser capaz de invalidar uma lei, por
exemplo, atuando contra a maioria legislativa. Para o autor, quando a
Suprema Corte declara inconstitucional um ato legislativo ou uma ação
do executivo eleito, isso frustra a vontade dos representantes do
povo, de forma que o controle está sendo exercido não em nome da
maioria vigente, mas contra ela.62
Além
de ser contramajoritário rever atos do Legislativo e do Executivo,
Bickel afirma que o judicial
review pode,
num sentido mais amplo, enfraquecer o processo democrático ao longo
do tempo.63
Como
contra-argumento, Barroso defende que a ideia de democracia não se
resume ao princípio majoritário, que se move por interesse, mas se
inspira em valores.64
O problema da legitimidade democrática do Judiciário não seria
necessariamente maior que a do Executivo e a do Legislativo, que
frequentemente é afetada por abuso do poder econômico, por
manipulação dos meios de comunicação e pela apatia e
distanciamento do cidadão em relação ao processo eleitoral. No
Brasil, essa problemática se agrava de forma exponencial, abalando
profundamente a credibilidade das instituições de representação
popular, tendo em vista os constantes escândalos de corrupção
rotineiramente noticiados pela imprensa brasileira.
Barroso
se vale de dois argumentos a legitimarem o controle de
constitucionalidade e a judicialização das políticas públicas, em
contraponto à tese de Bickel, um de natureza normativo e outro
filosófico.
65
A
justificativa normativa é simples e decorre da constatação de que
foi a Constituição que atribuiu ao Poder Judiciário o controle de
constitucionalidade, bem como o princípio da inafastabilidade de
jurisidição. Por opção, o Constituinte se utilizou em demasia de
conceitos indeterminado, a fim de que pudessem melhor ser definidos
no caso concreto, transformando o intérprete em co-partícipe do
processo de criação do Direito.
A
justificativa filosófica parte da compreensão de que o Estado
Constitucional de Direito consiste na confluência do
constitucionalismo com a democracia. Constitucionalismo significa
limitação do poder, expresso no princípio da separação dos
poderes e na garantia dos direitos fundamentais; democracia, por sua
vez, quer dizer, de maneira simplista, representatividade popular.
Essas duas categorias geram tensões, e cabe à Constituição a
mediação delas, estabelecendo as regras do jogo democrático. O
papel do Judiciário é justamente preservar o processo democrático
e promover os valores constitucionais.
Nesse
sentido, pode-se afirmar que uma democracia verdadeira exige mais do
que eleições livres, com sufrágio universal e a possibilidade de
alternância do poder. Pelo conceito moderno, Democracia pressupõe
também a fruição de direitos básicos por todos os cidadãos, de
modo a permitir que cada um forme livremente suas opiniões e
participe dos diálogos políticos travados na esfera pública. Dessa
forma, quando o Poder Judiciário garante esses direitos fundamentais
contra os descasos ou arbitrariedades das maiorias políticas
(atuação contra majoritária), está na verdade, protegendo os
pressupostos para o funcionamento da democracia, e não atuando
contra ela. É o que Tércio Sampaio Ferraz Júnior denomina de
democracia substancial66.
Nas
palavras de Barroso:
(...) democracia não se resume ao princípio majoritário. Se houver oito católicos e dois muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro grupo deliberar jogar o segundo pela janela, pelo simples fato de estar em maior número. Aí está o segundo grande papel de uma Constituição: proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de quem tem mais votos. E o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando como um forum de princípios – não de política – e de razão pública – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias políticas ou concepções religiosas.67
Esse
conceito de democracia, segundo uma visão substancial, já foi
expressamente acatada em julgamento do Superior Tribunal de Justiça.
In verbis:
(...) Nem mesmo a vontade da maioria pode tratar tais direitos como secundários. Isso porque a democracia não se restringe na vontade da maioria. O princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos direitos fundamentais. Só haverá democracia real onde houver liberdade de expressão, pluralismo político, acesso à informação, à educação, inviolabilidade da intimidade, o respeito às minorias e às ideias minoritárias etc. Tais valores não podem ser malferidos, ainda que seja a vontade da maioria. Caso contrário, se estará usando da "democracia" para extinguir a Democracia.
Portanto,
conclui-se pela possibilidade de judicialização de direitos
sociais, em razão da força normativa da Constituição, que
expressamente viabiliza esse fato, assim como pela noção moderna de
democracia, que não se coaduna com o desrespeito a direitos
fundamentais.
Cabe
salientar, entretanto, que judicialização não se confunde com
ativismo judicial. Ambos possuem diversas semelhanças, mas, origens
diversas, de forma que não podem ser confundidos. A judicialização,
no contexto brasileiro, é um fato decorrente do modelo
constitucional adotado, e não uma opção deliberada dos magistrados
pátrios. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma
pretensão, cabe ao juiz conhecê-la, decidindo a matéria. O
ativismo judicial, por outro lado, é uma atitude, uma escolha de um
método proativo de interpretar e aplicar a Constituição,
expandindo o seu alcance. Normalmente, essa situação se instala
quando há uma retração dos Poderes essencialmente políticos,
quando há uma crise institucional de representatividade, abrindo
espaço para que o Judiciário passe a decidir questões fulcrais
para a sociedade.68
A
imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Executivo em
matérias de políticas públicas é uma atuação ativista do
Judiciário, já que, nesse caso, não ocorre a aplicação direta e
imediata de um comando constitucional, de forma que o magistrado
desconsidera a normatização existente, utilizando-se de critérios
menos rígidos que os de patente e ostensiva violação à
Constituição. Isso se evidencia nas ações evolvendo o direito à
saúde, como as pretensões por tratamentos ou medicamentos não
previstos pelo SUS, ou até mesmo não autorizados pela ANVISA.
É
preciso vislumbrar que o ativismo judicial não é ruim em si mesmo.
Ele tem um aspecto positivo: significa que o Judiciário está
atendendo às demandas da sociedade, o que é relevante,
principalmente tendo em vista as inúmeras carências sociais
existentes no Brasil.
Por
outro lado, a mencionada posição proativa dos magistrados
brasileiros exibe as dificuldades enfrentadas pela classe política
em lidar com os problemas da sociedade. Isso enfraquece ainda mais o
processo político representativo do país, distancia os cidadãos de
seus governantes e dificulta o desenvolvimento social pelas vias
tradicionais e mais adequadas. Esse quadro demonstra a necessidade
palpitante de uma reforma política.
O
grande problema da crescente judicialização é uma atuação
excessivamente ativista e desarrazoada por parte de alguns
magistrados brasileiros, que, não raramente, desconsideram por
completo as decisões tomadas pelos governantes. Com efeito, são
frequentes as decisões extravagantes e emocionais, determinando que
a Administração realize o custeio de tratamentos absolutamente
irrazoáveis, a exemplo daqueles inacessíveis por serem
excessivamente dispendiosos, daqueles sem comprovação científica
de sua efetividade ou de outros que possuem eficácia duvidosa,
associados a terapias alternativas. Enfim, são determinações de
que o Governo ofereça tratamentos que não são normalmente
prestados pelo Poder Público em razão de circunstâncias
criteriosamente aferidas, após inúmeras rodadas de debate, por
aqueles que foram designados democraticamente para tanto.
Além
disso, constantemente, a hierarquia federativa estabelecida pela Lei
do SUS, com esteio na Constituição Federal, também é
completamente ignorada, o que evidencia a subversão do regime de
prestação de serviços de saúde, tal qual estabelecido pelo
Ordenamento pátrio.
As
rotineiras judicializações são responsáveis, também, por um
aumento exacerbado dos custos públicos, seja daqueles realizados
pelos entes nas suas defesas judiciais, seja dos destinados ao
cumprimento das decisões acima referidas.
Em
tom de crítica, assim já se manifestou o então Procurador do
Estado do Rio de Janeiro Luís Roberto Barroso:
Tais excessos e inconsistências não são apenas problemáticos em si. Eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. No limite, o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas. O que se observa, em muitos casos, é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade dos cidadãos, que continuam dependentes das políticas públicas.69
Nesse
contexto, como bem salientado por Daniel Sarmento, apesar de todos os
avanços alcançados nas últimas décadas, no que tange ao acesso à
Justiça, a principal clientela do Judiciário brasileiro continua
sendo a classe média. Os segmentos mais excluídos da sociedade
brasileira dificilmente vão à Justiça reclamar seus direitos, até
mesmo em virtude da hipossuficiência cultural, que as impede de
sequer conhecerem esses direitos. Dessa forma, levando em conta o
fato de que, diante da escassez, as decisões explicitamente
alocativas de recursos são implicitamente desalocativas, o que acaba
por ocorrer é uma espécie de ‘Robin Wood às avessas’, na
medida em que se retiram recursos de políticas públicas que
atingiriam os mais pobres para transferi-los aos mais abastados,
ficando aqueles cada vez mais carentes desses direitos.70
Corroborando
o exposto acima, no que concerne à judicialização do direito à
saúde no Brasil, Antônio Maués assim se posiciona:
O modo como se desenvolveu a judicialização do direito à saúde no Brasil permite a determinados indivíduos - muitas vezes das classes mais abastadas - ter acesso a prestações que não são oferecidas para toda a população, prejudicando a equidade e a eficiência do sistema público. Na raiz dessas dificuldades, encontra-se uma compreensão imperfeita dos princípios que regem as políticas de saúde no Brasil, o que faz com que as demandas nessa área sejam tratadas como problemas de justiça comutativa e não de justiça distributiva.71
A
título ilustrativo, cabe mencionar duas decisões capazes de
demonstrar o quanto exposto. A primeira é uma decisão do TRF da 2ª
Região, ordenando a internação de pessoas determinadas no INCA –
instituto federal de ponta na área de cancerologia, localizada no
Rio de Janeiro –, ignorando tanto as filas existentes para o acesso
a essa unidade de saúde, como os critérios médicos que o Instituto
emprega para selecionar seus pacientes.72
A outra é decisão do Superior Tribunal de Justiça, a qual condenou
estado da federação a fornecer a indivíduo medicação altamente
dispendiosa, fabricada no exterior, cuja importação havia sido
proibida pela ANVISA à luz de pesquisas comprovando sua ineficácia,
com base apenas em prescrição médica apresentada pelo particular.73
Não
se está aqui a defender a absoluta impossibilidade de judicialização
das políticas públicas de saúde. O que se está rechaçando são
as decisões casuísticas, emotivas, que não levam em consideração
o quadro geral da questão.
Para
que uma decisão judicial no campo das políticas públicas seja
legítima, ela precisa observar certos requisitos, consoante restará
enunciado.
Defende-se,
aqui, que, para uma decisão judicial no campo das políticas
públicas de saúde ser legítima, ela deve observar dois critérios
básicos: deve ser excepcional e deve obediência ao dever de
argumentação.
Na
esteira do quanto exposto, já se enunciou a possibilidade de
judicialização de matérias envolvendo a prestação de serviços
públicos de saúde. Essa possibilidade, entretanto, é bastante
questionada por estudiosos e juristas de peso, com fundamento na
tripartição dos poderes, na falta de legitimidade democrática do
judiciário, na carência de capacidade técnica desse órgão ou
mesmo na ausência de exigibilidade desses direitos. Todos esses
argumentos devem ser rechaçados, conforme aduzido no tópico supra.
Em
que pese os argumentos favoráveis alhures elucidados, não se pode
negligenciar os riscos que um ativismo judicial exagerado provoca a
uma democracia representativa. Não é admissível que se transforme
o Poder Judiciário na principal fonte de decisões a respeito de
políticas públicas, que seja o principal responsável pelas
escolhas alocativas nesta seara. É preferível um regime que não
negue ao Poder Judiciário um papel relevante na proteção dos
direitos sociais, mas, por outro lado, não o converta à condição
de protagonista neste campo.
Roberto
Barroso também se posiciona dessa forma:
A importância da Constituição – e do Judiciário como seu intérprete maior – não pode suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo. A Constituição não pode ser ubíqua. Observados os valores e fins constitucionais, cabe à lei, votada pelo parlamento e sancionada pelo Presidente, fazer as escolhas entre as diferentes visões alternativas que caracterizam as sociedades pluralistas. Por essa razão, o STF deve ser deferente para com as deliberações do Congresso. Com exceção do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em relação a tudo mais os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos. Juízes e tribunais não podem presumir demais de si próprios – como ninguém deve, aliás, nessa vida – impondo suas escolhas, suas preferências, sua vontade. Só atuam, legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões, com base na Constituição.74
O
ambiente adequado para as discussões políticas e para a
determinação dos rumos do país é no bojo do Congresso Nacional,
com a condução do Poder Executivo, por indivíduos escolhidos
democraticamente pelo povo para tanto, não por meio do Poder
Judiciário.
Nesse
sentido, foi elaborada a teoria das escolhas trágicas, tratada na
obra “Tragic Choices”75,
dos autores Guido Calabresi e Philip Bobbit. Para eles, diante das
infinitas necessidades e pretensões da população e da escassez de
recursos de que dispõe o governante, é necessário a este realizar
escolhas a respeito do que é prioridade e do que pode ser deixado de
lado. Escolhas que são consideradas trágicas, pois alocar
determinados recursos para certa área implica desalocar verbas para
outro setor igualmente importante. Nesse contexto, o Orçamento é
o locus adequado
para a realização das escolhas
trágicas públicas, também
chamadas de escolhas
políticas.
É no espaço democrático do Parlamento que devem ser realizadas as
opções políticas referentes às receitas e aos gastos públicos
que determinam o caminho escolhido pela sociedade para a realização
de seus ideais.
Tais
escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto
disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas
opções políticas, pautadas por critérios de macrojustiça. É
dizer, a escolha, da destinação de recursos para uma política e
não para outra leva em consideração fatores como o número de
cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e eficácia
do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados etc.76
O
Ministro Celso de Melo, já se pronunciou expressamente, em obter
dictum, a respeito
da referida teoria. Senão vejamos:
Essa relação dilemática, que se instaura na presente causa, conduz os Juízes deste Supremo Tribunal a proferir decisão que se projeta no contexto das denominadas “escolhas trágicas” (GUIDO CALABRESI e PHILIP BOBBITT, “Tragic Choices”, 1978, W. W. Norton & Company), que nada mais exprimem senão o estado de tensão dialética entre a necessidade estatal de tornar concretas e reais as ações e prestações de saúde em favor das pessoas, de um lado, e as dificuldades governamentais de viabilizar a alocação de recursos financeiros, sempre tão dramaticamente escassos, de outro.77
Dessa
forma, o mais adequado é que as decisões políticas a respeito do
direito à saúde sejam tomadas pelo Executivo e pelo Legislativo,
sendo o Judiciário via excepcional. Nesse diapasão, vale destacar
duas ideias que contribuem com a tese aqui defendida: a de
capacidades institucionais e de efeitos sistêmicos.
Capacidade
institucional envolve a determinação de qual Poder está mais
habilitado a tomar a melhor decisão em determinada área. Temas
envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade
não podem ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por
falta de informações ou conhecimento específico. No aspecto formal
e normativo, os membros do Judiciário sempre conservarão sua
competência para o pronunciamento definitivo; no entanto, nas
situações descritas, o mais adequado é prestigiar as manifestações
daqueles que se apresentam mais preparados para tomar tais decisões.78
No caso das políticas públicas de saúde, o magistrado deve
prestigiar as manifestações do Legislativo e do Executivo, em forma
de deferência às escolhas políticas tomadas por esses Poderes.
Daniel
Sarmento expõe com maestria a problemática que envolve o tema:
Em matéria de controle judicial de políticas públicas, além da dificuldade decorrente da falta de expertise dos juízes, há também o problema que resulta da própria dinâmica dos processos judiciais. O processo judicial foi pensado com foco nas questões bilaterais da justiça comutativa, em que os interesses em disputa são apenas aqueles das partes devidamente representadas95. Contudo, a problemática subjacente aos direitos sociais envolve sobretudo questões de justiça distributiva, de natureza multilateral, já que, diante da escassez, garantir prestações a alguns significa retirar recursos do bolo que serve aos demais. Boas decisões nesta área pressupõem a capacidade de formar uma adequada visão de conjunto, o que é muito difícil de se obter no âmbito de um processo judicial. Este, com seus prazos e formalidades, está longe de ser o ambiente mais propício para a análise de políticas públicas, por não proporcionar pleno acesso a miríade de informações, dados e pontos de vista existentes sobre aspectos controvertidos. Na verdade, o processo judicial tende a gerar uma “visão de túnel”, em que muitos elementos importantes para uma decisão bem informada são eliminados do cenário, enquanto o foco se centra sobre outros – não necessariamente os mais relevantes.79
Os
riscos de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis também
contribuem a uma posição de deferência por parte do Judiciário. O
juiz, por vocação, está preparado para realizar a justiça no caso
concreto, a microjustiça. Ele nem sempre dispõe das informações,
do tempo e do conhecimento técnico para avaliar o impacto que suas
decisões terão no mundo concreto. Ele tampouco é passível de
responsabilização pelas escolhas eventualmente desastrosas tomadas
nas áreas econômicas ou políticas.80
No campo das políticas públicas de saúde, esses efeitos sistêmicos
se evidenciam.
Em
síntese, a democracia não impede a intervenção voltada à
afirmação dos direitos sociais, mas antes a exige. Os direitos
sociais são verdadeiros direitos fundamentais, dotados de
efetividade e plena aplicabilidade. É inadmissível tese que afaste
do controle judicial qualquer esfera de poder estatal, sobretudo
envolvendo direitos fundamentais. Questões como separação dos
poderes ou mérito administrativo têm sido relativizados e até
plenamente superados, diante do reconhecimento da força normativa
dos direitos fundamentais e de princípios constitucionais como os da
proporcionalidade, da moralidade administrativa e da eficiência.
Nada obstante o princípio democrático, a tripartição dos poderes,
a capacidade técnica, os efeitos sistêmicos, tudo isso demanda que
se reconheça um espaço significativo de conformação ao Executivo
e ao Legislativo na área de políticas públicas, por ser esse o
meio mais adequado para que as melhores decisões possam ser tomadas.
Fonte:Internet.
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Os
riscos para a legitimidade democrática, em razão de os membros do
Judiciário não serem eleitos, atenuam-se na medida em que juízes e
tribunais se atenham à aplicação da Constituição e das leis. Não
atuam eles por vontade política própria, mas como representantes
indiretos da vontade popular. É evidente que, diante de cláusulas
abertas e comandos excessivamente abstratos – como dignidade da
pessoa humana ou direito à saúde –, os pronunciamentos judiciais
tomam formas praticamente normativas. Nada obstante, havendo prévia
manifestação do legislador, ou seja, existindo lei válida votada
pelo Congresso Nacional, com a pretensão de concretizar a norma
constitucional, deve o juiz acatá-la e aplica-la. É dizer, diante
de diferentes possibilidades de interpretar a Constituição, o
magistrado deve dar preferência às escolhas do legislador, por ser
ele quem detém o batismo do voto popular.
No
tocante à capacidade institucional e aos efeitos sistêmicos, o
Judiciário deve verificar se, em relação à matéria tratada, um
outro Poder, órgão ou entidade não teria melhor qualificação
para decidir. Na elaboração das políticas públicas de saúde, a
posição do magistrado deve ser pautada pela deferência para com as
valorações feitas pela instância especializada, desde que possuam
razoabilidade e tenham observado o procedimento adequado.
Naturalmente, se houver flagrante afronta a direito fundamental ou a
outra norma constitucional, o Judiciário estará habilitado a agir.
Deferência não significa abstenção ou abdicação.
Nas
palavras do Ministro Barroso, “o Judiciário quase sempre pode, mas
nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da própria
capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em
auto-limitação espontânea, antes o eleva do que diminui”81.
Sobre
a atuação excepcional do Judiciário no que se refere à
judicialização de políticas públicas, a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal passou a encampar esse posicionamento
principalmente a partir da Audiência Pública82
realizada em maio de 2009. Efetivamente,
com o fim da Audiência Pública sobre saúde de 2009, o STF criou as
referências jurisprudenciais para decidir sobre pedidos de prestação
à saúde, tendo figurado como valoroso precedente a decisão acerca
do AgRg da STA 175-CE, cujo relator foi o Ministro Gilmar Mendes.
Nas
palavras do próprio Ministro Gilmar Mendes, defendeu-se o seguinte:
Ademais, não se pode esquecer de que a gestão do Sistema Único de Saúde, obrigado a observar o princípio constitucional do acesso universal e igualitário às ações e prestações de saúde, só torna-se viável mediante a elaboração de políticas públicas que repartam os recursos (naturalmente escassos) da forma mais eficiente possível. Obrigar a rede pública a financiar toda e qualquer ação e prestação de saúde existente geraria grave lesão à ordem administrativa e levaria o comprometimento do SUS, de modo a prejudicar ainda mais o atendimento médico da parcela da população mais necessitada. Dessa forma, podemos concluir que, em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou impropriedade da política de saúde existente. Essa conclusão não afasta, contudo, a possibilidade de o Poder Judiciário, ou de a própria Administração, decidir que medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que, por razões específicas do seu organismo, comprove que o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso. Inclusive, como ressaltado pelo próprio Ministro da Saúde na Audiência Pública, há necessidade de revisão periódica dos protocolos existentes e de elaboração de novos protocolos. Assim, não se pode afirmar que os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS são inquestionáveis, o que permite sua contestação judicial.83 (grifou-se)
De
fato, o pleito do paciente pode até representar o seu melhor
interesse, mas não leva em linha de conta os interesses da sociedade
como um todo, assim como, por vezes, desconsidera a competência
atribuída ao Sistema Único de Saúde para gerenciar as ações de
saúde e os parâmetros para o diagnóstico e tratamento das diversas
moléstias.
Em
ilustrada síntese, Fernando Facury Scaff aponta as posições
adotadas por nossa Corte Maior, no bojo do AgRg da STA 175-CE.
1) Quando a ação de saúde pretendida for prevista nos textos normativos e não estiver sendo prestada: O Poder Judiciário deve intervir a fim de fazer cumprir a norma.
2) Quando a ação de saúde pleiteada não estiver entre as políticas do SUS, é imprescindível distinguir se ela decorre:
a) de uma omissão legislativa ou administrativa: Deverá ser privilegiado o tratamento estabelecido pelo SUS, e serem feitas revisões periódicas dos protocolos de saúde, sendo permitido ao Poder Judiciário intervir caso um indivíduo comprove que o tratamento fornecido não é adequado para atender o seu caso.
b) de uma decisão administrativa de não fornecê-la em virtude de:
i) o SUS fornece tratamento alternativo: Igualmente deverá ser privilegiado o tratamento disponibilizado pelo SUS, sempre que não for comprovada a eficácia ou a impropriedade da política existente.
ii) o SUS não possui tratamento para esta patologia:
(1) Por ser um tratamento meramente experimental: Neste caso caracteriza-se como pesquisa médica e não é possível o Poder Judiciário deferir os pleitos efetuados.(2) Por ser um novo tratamento ainda não testado pelo SUS, mas disponível na rede privada: O Poder Judiciário poderá intervir, em ações individuais ou coletivas, para que o SUS dispense aos seus pacientes o mesmo tratamento disponível na rede privada, mas desde que haja instrução processual probatória, o que inviabiliza o uso de liminares.
b) de uma vedação legal à sua dispensação: Esta hipótese, a despeito de elencada pelo acórdão, não foi tratada em seu texto.84
Note-se
que, após o mencionado STA 175-CE e a Audiência Pública a que se
referiu, a posição do STF se consolidou no sentido da
excepcionalidade do controle de políticas públicas. Senão vejamos.
DIREITO ADMINISTRATIVO. SEGURANÇA PÚBLICA. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. OFENSA NÃO CONFIGURADA. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 04.11.2004. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes. Precedentes. Agravo regimental conhecido e não provido.85
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ABRIGOS PARA MORADORES DE RUA. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 279 DO STF. OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. INEXISTÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (...) Esta Corte já firmou entendimento no sentido de que não ofende o princípio da separação de poderes a determinação, pelo Poder Judiciário, em situações excepcionais, de realização de políticas públicas indispensáveis para a garantia de relevantes direitos constitucionais. Precedentes. Agravo regimental desprovido.86
Cabe
ressaltar que a situação é diferente na hipótese em que o Poder
Judiciário não está interferindo nas políticas públicas, mas
apenas determinando que o Executivo cumpra política previamente
estabelecida. Nesse caso, não há que se cogitar de interferência
indevida ou de ativismo judicial, tendo em vista a completa
vinculação do magistrado ao comando normativo concreto existente.
Esse é o entendimento também do STF:
AGRAVO
REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL
CIVIL. REPERCUSSÃO GERAL PRESUMIDA. SISTEMA PÚBLICO DE SAÚDE
LOCAL. PODER JUDICIÁRIO. DETERMINAÇÃO DE ADOÇÃO DE MEDIDAS PARA
A MELHORIA DO SISTEMA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DOS
PODERES E DA RESERVA DO POSSÍVEL. VIOLAÇÃO. INOCORRÊNCIA. AGRAVO
REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (...) decidiu que, em se
tratando de direito à saúde, a intervenção judicial é possível
em hipóteses como a dos autos, nas quais o Poder Judiciário não
está inovando na ordem jurídica, mas apenas determinando que o
Poder Executivo cumpra políticas públicas previamente
estabelecidas. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.87
Portanto,
nesse contexto de deferência às políticas públicas traçadas pelo
Legislativo e pelo Executivo, a atuação jurisdicional deve ser
excepcional, apenas quando não houver, em absoluto, a prestação de
serviços públicos em certas áreas ou quando a política pública
traçada for claramente inconstitucional, ilegal ou insuficiente.
Além disso, é preciso observar sempre o dever de fundamentação,
nos termos a seguir expostos.
Toda
e qualquer decisão judicial depende, inexoravelmente, da devida
fundamentação para que seja válida e legítima. Deveras, ao passo
em que o voto chancela a atuação dos poderes majoritários, é a
racionalidade exarada nas decisões judiciais que lhes confere
legitimidade. Decisão não (ou mal) fundamentada é, então, decisão
ilegítima.
É
na fundamentação da decisão que o magistrado expõe as razões de
seu convencimento, as razões que o levaram a decidir da forma como
decidido, fazendo-o pelo confronto das razões de fato, devidamente
demonstrada nos autos, e pela incidência da norma jurídica ao caso
concreto. Sem a devida fundamentação, a decisão judicial se torna
mera arbitrariedade, sem qualquer legitimidade perante a sociedade.
Partindo
do pressuposto de que a fundamentação da decisão judicial consiste
em mecanismo de controle do exercício da função jurisdicional,
defende-se a existência de duas funções primordiais à
fundamentação: a função endoprocessual e a função
extraprocessual.88
A
função endoprocessual manifesta-se pela possibilidade de as partes,
conhecendo as razões que embasaram o convencimento do julgador,
poderem insurgir-se contra a decisão. Os órgãos recursais, por sua
vez, apenas serão aptos a reformá-la desde que também tenham
conhecimento da fundamentação que serviu de substrato ao juízo de
primeiro grau. Dessa forma, dentro do processo, é indiscutível a
essencialidade da fundamentação, a fim de garantir o contraditório
e assegurar a melhor decisão para o caso concreto.
A
função extraprocessual, por sua vez, não tem caráter jurídico,
mas político. Ela evidencia, pela análise da fundamentação das
decisões, a legitimidade do próprio Poder Judiciário, que exerce
parcela das funções do Estado delegadas pelo povo. A fundamentação,
politicamente, é vista como o meio que permite à sociedade
fiscalizar a atuação do magistrado.
Esse
imperativo de fundamentação encontra alicerce constitucional, no
art. 93, IX, que estabelece:
Art. 93, IX da CF: Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
Versando
sobre o tema, assim se pronunciou Nelson Nery Junior:
Interessante observar que normalmente a Constituição Federal não contém norma sancionadora, sendo simplesmente descritiva e principiológica, afirmando direitos e impondo deveres. Nas a falta de motivação é vício de tamanha gravidade que o legislador constituinte, abandonando a técnica de elaboração da Constituição cominou no próprio texto constitucional a pena de nulidade.89
Buscando
assegurar efetividade ao comando constitucional, o novo Código de
Processo Civil, em seu art. 489, §1º, traz um rol mínimo de
requisitos para que se considere uma decisão como fundamentada. Uma
vez descumprido os requisitos traçados pelo dispositivo, o que se
tem é inexistência de fundamentação, implicando a nulidade da
decisão, nos termos do art. 93, IX da CF.
Art. 489, §1o do NCPC: Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
A
novidade legislativa é interessante e acertada. O objetivo é
exercer um controle prévio sobre as decisões dos magistrados,
estabelecer parâmetros mínimos que eles devem seguir para que suas
decisões não sejam anuladas por absoluta inexistência de
fundamentação.
Veja-se
que não se está aqui se referindo às hipóteses de fundamentação
deficiente, fraca ou insubsistente. O novel dispositivo legal elenca
hipóteses em que a decisão é considerada, simplesmente, como não
fundamentada.
A
partir da análise dos incisos supratranscritos verifica-se que a
preocupação do legislador foi impor ao juiz o dever de efetivamente
apreciar o caso concreto, os argumentos aduzidos pelas partes e as
peculiaridades trazidas aos autos. As decisões não podem ser
tautológicas, a ponto de simplesmente reproduzirem o dispositivo
normativo, sem analisar a incidência da norma no caso concreto; não
podem invocar conceitos indeterminados sem a devida concretização
desses comandos, de acordo com o caso concreto. Não é possível a
utilização de argumentos genéricos, que poderiam justificar
qualquer outra decisão a respeito da matéria, como a mera alegação
de que é dever do Poder Público prestar certo serviço público; é
preciso destacar o porquê de aquela ser a solução adequada ao caso
concreto. É preciso, ainda, garantir o contraditório em seu aspecto
substancial; levar, efetivamente, em consideração os argumentos
aduzidos pelas partes e apreciar suas alegações no caso concreto.
Por fim, é preciso o respeito aos precedentes, seja no momento de
aplicá-los, para não o fazer de forma mecânica e sem
fundamentação, seja quando do seu afastamento, em homenagem ao que
já restou consolidado na jurisprudência.
Dessa
forma, o magistrado não deve, por exemplo, simplesmente, acolher
pretensão da parte autora, sob o argumento de que se trata de um
direito fundamental, e, portanto, inafastável. É imprescindível a
análise da situação concreta, com a apreciação dos argumentos do
ente requerido e com o estudo acerca das capacidades financeiras do
Estado, da necessidade do demandante, da existência de outros
tratamentos alternativos previstos pelo SUS etc.
No
que se refere às decisões judiciais envolvendo políticas públicas
de saúde, a fundamentação das decisões ganha contornos especiais,
com a exigência de rigor mais acentuado. Isso porque, os direitos
fundamentais sociais são comandos excessivamente abertos, com ampla
margem de conformação e com mais de uma solução possível e
razoável, ao passo que a interferência do Judiciário nessa área
tem amplas implicações, com reverberação em todo o sistema,
alocação de verbas, efeitos sistêmicos etc.
Dessa
forma, tais decisões aumentam o dever de fundamentação dos juízes.
Para garantir legitimidade e racionalidade, o juiz, no momento de sua
interpretação, precisa se socorrer à argumentação, devendo: i)
reconduzir sua interpretação sempre ao sistema jurídico, a uma
norma legal ou constitucional que lhe sirva de fundamento, pois a
legitimidade de uma decisão judicial decorre de sua vinculação a
uma deliberação majoritária, seja do constituinte ou do
legislador; ii) utilizar-se de um fundamento jurídico que possa ser
universalizado aos casos equiparáveis (decisões judiciais não
devem ser casuísticas); iii) levar em consideração as
consequências que sua decisão acarretará à realidade90.
O
primeiro requisito já foi abordado no início deste tópico, sendo
indispensável que a decisão judicial se fundamente em algum comando
normativo, legal ou constitucional, na medida em que, dessa forma,
garante-se a legitimidade indireta do decisum.
Pelo
segundo requisito, da universabilidade, exige-se que, justificada uma
decisão pelo oferecimento das razões particulares “X” para o
caso concreto “Y”, uma vez, novamente, configurada as
circunstâncias “Y”, seja outra vez aplicado o argumento “X”,
criando um enunciado normativo universal (premissa normativa do caso
concreto). A universabilidade, portanto, nasce com a obrigação do
Estado Democrático e Social de Direito de tratar os cidadãos com
igualdade.91
A
justificação pela universabilidade é uma exigência da justiça
formal, a qual tem dois objetivos: um voltado para o passado, haja
vista que um caso concreto de hoje deve ser decidido de acordo com
critérios usados para casos julgados anteriormente; outro voltado
para o futuro, uma vez que o caso concreto de amanhã deve ser
julgado segundo critérios utilizados na decisão já tomada ontem –
desde que, é claro, abordem-se casos concretos com as mesmas
circunstancias fáticas e jurídicas.
Sendo
assim, a unviversalização da decisão é requisito para a
justificação racional, haja vista que justificar, racionalmente, a
decisão de um caso complexo depende de que a decisão tomada não só
tenha sentido em relação ao ordenamento jurídico como um todo
(consistência), mas também que ela, diante da realidade fática,
valorize os objetivos principiológicos daquele sistema (coerência),
até o ponto em que aquela decisão possa ser aplicada em todos os
casos iguais que possam vir a existir.
Fonte: Internet. |
Nesse
contexto, é interessante que as decisões envolvendo políticas
públicas na área de saúde sejam tomadas em processos coletivos,
onde a apreciação de todas as implicações que envolvem a matéria
não pode ser deixada de lado. Com efeito, em uma ação civil
pública que afete a todo um universo de pessoas, não há como
decidir sem considerar o seu efeito sobre as políticas públicas em
vigor e as verbas existentes. Nesse caso, o requisito da
universalização torna-se absolutamente inafastável.
Nas
ações individuais, conforme exposto, o raciocínio judicial deveria
ser o mesmo. Contudo, aqui, é mais fácil ao juiz ignorar as
questões que circundam a matéria e conceder, de maneira emotiva,
uma prestação que seria impossível de ser estendida a todos os
demais que estão na mesma situação. Isso ocorre porque, nas ações
individuais, os efeitos concretos de cada decisão sobre o orçamento
público costumam ser diminutos, o que, somado ao elevado apelo
emocional dessas ações, acaba levando o magistrado a decidir
favoravelmente ao pleito, mesmo que reconheça a violação ao
princípio da isonomia, na medida em que deixe de aplicar o mesmo
raciocínio para demanda coletiva.
Verifica-se
que, além do malferimento à racionalidade da fundamentação, tais
decisões emotivas, em processos individuais, tendem a se
multiplicar, o que pode criar um cenário caótico para o
administrador, comprometendo a possibilidade do Estado de implementar
com eficiência as políticas públicas previamente estabelecidas, o
que, em última análise, prejudica exatamente aqueles que mais
dependem das referidas políticas públicas.
Por
fim, quanto ao terceiro pressuposto, cabe ao julgador levar em conta
as consequências práticas das suas decisões nessa seara. Segundo
Barroso, a Constituição é responsável por transformar o poder
constituinte em poder constituído, isto é, Política em Direito.
Essa interface entre dois mundos dá à interpretação
constitucional uma inexorável dimensão política. Dessa forma, uma
corte constitucional não deve ser cega ou indiferente às
consequências práticas de suas decisões, inclusive para impedir
resultados injustos ou danosos ao bem comum ou aos direitos
fundamentais.92
Decisões
que interfiram em políticas públicas legitimamente estabelecidas
pelo Executivo e pelo Legislativo devem ter olhos atentos às
repercussões que podem gerar. É preciso verificar se os prejuízos
à sociedade provocados reflexamente pela decisão não são maiores
do que os benefícios individuais proporcionados pelo decisum.
A
interpretação constitucional configura, portanto, uma interpretação
concretizadora construtiva, porque visa integrar sistema, intérprete
e problema, ao passo que envolve a atribuição de significado aos
textos constitucionais que ultrapassam sua dicção expressa. Nesse
sentido, deve o intérprete buscar sempre a solução que produza o
melhor resultado para a sociedade93.
O
direito à saúde se apresenta, de acordo com a Constituição
Federal, como direito fundamental social, cuja efetivação se dá,
prioritariamente, mediante políticas públicas estabelecidas pelo
Poder Executivo e pelo Legislativo. Diante da força normativa da
Constituição, assim como em face da extrema importância desse
direito, o qual está diretamente relacionado à vida, mostrou-se
inexorável a possibilidade de exigi-lo perante o Poder Judiciário.
Nada
obstante, tal direito deve ser visto como um princípio, o que
implica reconhecê-lo como um direito subjetivo prima
facie. É que,
levando em consideração a franca necessidade de disponibilidade
orçamentária para a própria existência do direito à saúde,
concebê-lo como um direito subjetivo absoluto mostra-se claramente
equivocado e irresponsável, na medida em que significaria
desconsiderar todas as limitações à concessão judicial desse
direito, como a reserva do possível e o mínimo existencial.
Ostentando
a natureza de princípio, a efetivação judicial do direito à
saúde, por diversas vezes, se dará mediante critérios de
ponderação e de razoabilidade. Nessa atividade, mostra-se essencial
uma compreensão adequada, por parte do julgador, do conceito e da
delimitação da reserva do possível e do mínimo existencial.
A
reserva do possível pode ser dividida em fática e jurídica. A
primeira deve ser compreendida como a razoabilidade da
universalização da prestação exigida, considerando os recursos
efetivamente existentes. Isso porque não basta aferir a
disponibilidade financeira para atender à demanda individual
pleiteada no caso concreto, uma vez que, pelo princípio da isonomia,
não se apresenta justo oferecer a um o que não se poderia oferecer
a todos que se encontram na mesma situação. A reserva jurídica,
por sua vez, está relacionada com a existência de previsão
orçamentária para a efetivação dos gastos em questão. Não se
trata de condicionante absoluta, mas de critério a ser considerado e
ponderado no caso concreto, devendo-se privilegiar, sempre que
possível, a determinação de que o Estado inclua a prestação no
orçamento do próximo exercício, ao invés de ordenar o seu
cumprimento independentemente de previsão orçamentária.
O
mínimo existencial, por outro lado, consiste em rol mínimo de
direitos a serem assegurados a todos os indivíduos, tendo em vista a
dignidade da pessoa humana. Esse rol, segundo o que restou defendido
no presente trabalho, não deve ser aferido em abstrato, mas de
acordo com a situação concreta, levando em conta as condições e
possibilidades do demandante. Dessa forma, apenas as prestações
indispensáveis e com as quais o particular não possa arcar deverão
ser consideradas dentro do rol do mínimo existencial. Essa
conclusão, vale dizer, não significa simplesmente descartar a
possibilidade de análise da reserva do possível quando o direito
esteja enquadrado como mínimo essencial; no entanto, nesse caso,
será especialmente difícil ao Estado eximir-se da obrigação. Por
outro lado, a verificação de que o direito está fora desse rol
também não impede a concessão da pretensão, desde que o resultado
da ponderação, no caso concreto, seja positivo.
No
que tange à judicialização de políticas públicas na área da
saúde, observa-se que isto é um fato e decorre do modelo
constitucional adotado pelo Brasil a partir de 1988. Nada obstante, a
posição excessivamente proativa dos magistrados, cujas decisões
são, muitas vezes, emotivas e má fundamentadas, pode ocasionar uma
série de consequências gravosas, como a própria inviabilidade das
políticas públicas normalmente oferecidas aos cidadãos, em
prejuízo exatamente daqueles que mais necessitam delas.
Dessa
forma, para uma atuação coesa, coerente e legítima, é
imprescindível que a concessão de políticas públicas pela via
judicial ocorra apenas em situações excepcionais, quando a política
traçada for claramente inconstitucional, ilegal ou insuficiente. É
necessário que o Poder Judiciário adote uma posição de deferência
com relação às decisões tomadas no âmbito do Executivo e do
Legislativo, haja vista a maior capacidade técnica desses órgãos e
de sua legitimidade democrática.
Além
disso, verificada a excepcionalidade da decisão, é preciso observar
um pressuposto inafastável, o dever de fundamentação, uma vez que
é a racionalidade exarada nas decisões judiciais que lhes confere
legitimidade. Dessa forma, cumpre aos magistrados apreciar
atentamente o caso sub
judice,
pronunciando-se efetivamente acerca dos fundamentos levantados pelas
partes, com a realização de adequada ponderação no caso concreto,
segundo as noções já assentadas neste trabalho. Tal dever de
fundamentação ganha especial relevo no que se refere às demandas
envolvendo políticas públicas de saúde, tendo em vista a ampla
margem de conformação no caso concreto, com mais de uma solução
possível e razoável. Por essa razão, os magistrados devem observar
três pressupostos básicos para que profiram uma decisão bem
fundamentada: devem reconduzir suas decisões sempre ao sistema
jurídico; devem utilizar-se de fundamento que possa ser
universalizado; e devem levar em conta as consequências que sua
decisão acarretará à realidade.
Por
fim, é possível verificar que o Brasil deu importante passo na
efetivação do direito à saúde. O reconhecimento deste como
direito fundamental exigível judicialmente deve ser aplaudido e
comemorado. No entanto, é preciso superar certa euforia que tomou
conta dos meios jurídicos a partir desse reconhecimento. É
necessário ter em vista que o grande protagonista nesse cenário são
os poderes majoritários (Executivo e Legislativo), e não o
Judiciário, cuja atuação deve ser excepcional e bem fundamentada.
O
presente estudo não teve a pretensão de esgotar a matéria, mas sim
de analisar criticamente os principais pontos que circundam a
matéria, com o apontamento do entendimento jurisprudencial a
respeito deles, para, ao fim, concluir-se o que se mostra correto e o
que se apresenta como equivocado e passível de aperfeiçoamento.
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2
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3
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social: trajetória
da saúde pública. 1ª Ed. São Paulo: SENAC, 1998. p. 24.
4
CAPRA, Fritjof.
O Ponto de Mutação.
7ª Ed., São Paulo: Editora Cultrix, 2001. Descartes preleciona: ―
Considero o corpo
humano uma máquina. (...) Meu pensamento (...) com para um homem
doente e um relógio mal fabricado com a idéia de um homem saudável
e um relógio bem-feito‖.
5
SCHWARTZ, Germano André
Doederlein. Direito a
saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica.
1ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p.37.
7
SILVA, José Afonso da.
Curso de Direito
Constitucional Positivo.
27. Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 178.
12
SILVA, José Afonso da.
Curso de Direito
Constitucional Positivo.
30ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008,,
p. 831.
13
Segundo
essa teoria, são quatro os possíveis status do
indivíduo na sua relação com o Estado:
o passivo (status
subjectionis),
o ativo (Status
activus civitates),
o negativo (Status
libertatis)
e o positivo (Status
civitates).
- MARMELSTEIN,
George. Op.
Cit., p. 320.
16HOLMES;
SUSTEIN, The
cost of rights: why liberty depends on taxes.
New York/London: W.W, Norton & Company, 1999.
17
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26
É o
que ele denomina de tese forte, ou qualitativa, em contraposição à
tese fraca ou quantitativa. Esta se apoia no grau de abstração de
cada espécie normativa (se abstrata, trata-se de princípio; se
concreta, configura uma regra), enquanto aquela se refere ao modo de
aplicação da norma, se por subsunção (regra) ou por ponderação
(princípio).
29
LEIVAS,
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dos direitos fundamentais sociais.
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atuação judicial.
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REVENGA Miguel; ROMBOLI, Roberto. Problemas
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Direitos Sociais - I Jornada Internacional de Direito Constitucional
Brasil/Espanha/Itália,
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72
TRF-2ª
Região. MS
nº 2002.51.01.018517-9,
4ª Turma, Relator: Desembargador Arnaldo Lima, DJ 17/03/2004.
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80
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Acesso em: 02/02/2016, p. 16.
82
Para
um aprofundamento maior nas matérias abordadas pela Audiência
Pública em questão, interessante
realizar
o estudo do material contido no sítio eletrônico do Supremo
Tribunal Federal, disponível:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cronograma>
84
NUNES,
António José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os
Tribunais e o Direito à Saúde,
Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2011, p. 126.
88
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judicial sem fundamentação no projeto do novo código de processo
civil,
p. 162.
In:
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Bezerra de (Coord.). O
Projeto do Novo Futuro CPC: tendências e desafios de efetivação.
Curitiba: Ed. CRV, 2013, p. 161-170.
89
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JUNIOR, Nelson. Princípios
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91
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de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais
e a construção do novo modelo. São
Paulo: Saraiva,
2009,
p. 287.
Para
citar este documento (ABNT/NBR 6023: 2002):
SILVEIRA, Felipe
Arruda Aguiar Sobreira da: Judicialização de políticas públicas na área da saúde: uma análise crítica. Práxis Jurídica, Ano III,
N.º 02, 03.03.2016 (ISSN 2359-3059). Disponível em: <http://praxis-juridica.blogspot.com.br/2016/03/judicializacao-de-politicas-publicas-na.html>.
Acesso em: .
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