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The Nightmare, by Johann Heinrich Füssli, 1781. |
Flávia
Ferreira Trindade
Acadêmica
do curso de licenciatura plena em filosofia da Universidade Federal
de Pelotas.
Kelin
Valeirão
Professora
do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas.
Para
que possamos compreender o dispositivo de sexualidade, é crucial
reportarmo-nos às transformações do período clássico. Segundo
Foucault, por muito tempo um dos privilégios característicos do
poder soberano fora o direito de vida e morte, originária da velha
patria
potestas
romano1,
concedia ao pai de família o poder sobre a vida de seus filhos, de
sua mulher e de seus escravos, podendo lhes retirar já que fora ele
que as havia “dado”. Foucault aponta que o direito de vida e
morte da maneira como é formulado pelos teóricos clássicos é uma
fórmula “bem atenuada” desse tipo de poder2.
“O poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de
apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida;
culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la.”
(FOUCAULT, 2012a, p. 148)
O
filósofo nos aponta que a forma de poder que se encontrava na época
da soberania poderia ser representada pela frase “fazer
morrer ou deixar
viver”.
Na época clássica haverá um deslocamento, surgindo um novo
objetivo: gerir a vida. Resumindo: “fazer
viver ou deixar morrer”;
com isso a velha forma do “confisco” se torna apenas uma forma
secundária juntamente com outras de função de incitação,
reforço, controle, vigilância e organização das forças
objetivando mais a sua produção do que a diminuição e destruição.
Em outras palavras, tudo que antes se fazia em nome de um, o
soberano, passa a ser feito em nome de uma população. Os mecanismos
que se criam a partir daí e as guerras que se travam, são com o
objetivo de gerir a vida, em nome da vida da população. “Essa
morte, que se fundamentava no direito do soberano de defender ou
pedir que o defendessem, vai parecer como o simples reverso do
direito do corpo social garantir sua própria vida, mantê-la ou
desenvolvê-la.” (FOUCAULT, 2012a, p. 148-149).
Porém,
Foucault expõe que, justamente a partir do século XIX, nunca se
viram guerras tão sangrentas, e com tão grandes proporções e
regimes, fazendo holocaustos nas suas próprias populações. E que
esse conhecido poder de morte é colocado agora como complemento de
um poder que é exercido positivamente sobre a vida, empreendendo sua
gestão, sua multiplicação, através de controles precisos e
regulações de conjunto. E como as guerras são travadas em nome e
em prol da existência de todos os massacres, segundo Foucault, se
tornam vitais. “Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos
corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras,
causando a morte de tantos homens.” (FOUCAULT, 2012a, p. 149).
Segundo Foucault, quanto mais a tecnologia das guerras foi sendo
centrada na destruição exaustiva, mais as tomadas de decisão que
as iniciam e encerram são direcionadas em função da questão da
sobrevivência.
O princípio: poder matar para poder viver, que sustentava a tática dos combates, tornou-se princípio de estratégia entre Estados; mas a existência em questão já não é aquela – jurídica – da soberania, é outra – biológica – de uma população. (FOUCAULT, 2012a, p. 149)
Foucault
expõe que se o genocídio é “o sonho dos poderes modernos” não
é por uma volta ao modo soberano de matar, mas por exercer no nível
da vida e dos fenômenos da população. Os que morrem nas guerras
substituem os que antes morriam no cadafalso, porém as razões se
assemelham, com o poder com a função de gerir a vida não por
razões humanitárias, mas pela razão de ser do poder e a lógica de
seu exercício que se torna cada vez mais difícil o ritual da pena
de morte. Nesse sentido, o filósofo questiona: “De que modo um
poder viria a exercer suas mais altas prerrogativas e causar a morte
se o seu papel mais importante é o de garantir, sustentar, reforçar
multiplicar a vida e pô-la em ordem?” (FOUCAULT, 2012a, p. 150).
Para essa nova forma de poder que se instaura a pena de morte seria,
para Foucault, ao mesmo tempo, o limite, escândalo e uma
contradição, logo, os que serão mortos àqueles que constituírem
uma forma de perigo biológico para os outros.
Pode se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver a morte. Talvez seja assim que se explique esta desqualificação da morte, marcada pelo desuso dos rituais que a acompanhavam. (FOUCAULT, 2012a, p. 150)
A
Era do
Bio-Poder
Concretamente,
esse poder que tem por finalidade gerir a vida, desenvolveu-se por
volta da metade do séc. XVIII ocorrendo por um lado, através das
disciplinas: anátomo
política do corpo humano:
corpo como máquina, adestramento, ampliação das aptidões,
crescimento paralelo da docilidade utilidade e, por outro lado,
formando-se um pouco mais tarde, por volta da metade do século
XVIII, o que Foucault chama de biopolítica
da população:
centrada no corpo espécie, corpo transpassado pela mecânica do ser
vivo e como suporte dos processos biológicos: tratando dos
nascimentos e a mortalidade, nível da saúde, duração da vida,
etc. Esses são os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a
organização do poder sobre a vida, o biopoder, a instalação –
anatômica e biológica individualizante e especificante, voltada
para os desempenhos do corpo e os processos da vida – caracteriza
esse poder que não é mais de matar, mas investir sobre a vida de
cima a baixo, desenvolvendo inúmeras e diversas técnicas para obter
a sujeição dos corpos e o controle das populações. Temos então a
potência de morte que era o poder soberano ser absorvida pela
administração dos corpos e a gestão e cálculo da vida, como
desenvolvimento rápido das disciplinas nas mais diferentes esferas
da sociedade – escolas, ateliês, fábricas – e também na esfera
das práticas políticas e econômicas – natalidade/mortalidade,
saúde, com objetivo de obter a sujeição dos corpos e o controle
das populações. Com isso, segundo Foucault, abre-se a era do
bio-poder, onde essas duas esferas ainda aparecem separadas, no
século XVIII. Do lado das disciplinas temos instituições como, por
exemplo, o exército ou as escolas, refletindo sobre as táticas,
aprendizagens, educação e ordem da sociedade.
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essa mesmas forças (em termos políticos de obediência). (FOUCAULT, 2012b, p. 133-134)
Ao
lado dos mecanismos de regulação referentes à população e
demografia encontra-se a estimativa da relação entre recursos e
habitantes, o cálculo das riquezas e de sua circulação, das vidas
e de sua duração.
[...] uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em compensar seus efeitos. (FOUCAULT, 2010, p. 209)
Segundo
Foucault, este bio-poder – através da introdução regulada dos
corpos nos meios de produção e da ordenação dos fenômenos da
população – foi um elemento indispensável ao desenvolvimento do
capitalismo. Mas, além disso, lhe foi necessário todo um
desenvolvimento dos aparelhos de Estado, todos esses mecanismos de
anátomos e de bio-política funcionaram no nível dos processos
econômicos, e de tudo que se refere ao seu andamento, em fatores de
segregação da sociedade e na garantia das relações de dominação
e hegemonia; na relação entre acúmulo de homens e de capital,
todos esses processos só foram possíveis através do bio-poder. É
o uso e manutenção dos indivíduos, o investimento e gestão sobre
os corpos vivos e distribuição de suas forças para o
desenvolvimento de toda uma série de processos políticos e
econômicos. Temos assim, segundo Foucault, a entrada da vida na
história, sendo entendida como a introdução dos fenômenos
próprios a ela numa ordem de saber e de poder, no terreno das
técnicas políticas. O filósofo salienta que de forma alguma
pretende afirma que nesse período foi produzido o primeiro contato
da vida com a história, mas agora a sociedade ocidental
gradativamente aprende o que é ser uma “espécie viva num mundo
vivo”, ter condições de vida, saúde, em um espaço em que elas
podem ser administradas e (re)produzidas.
Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo do controle do saber e de intervenção do poder. (FOUCAULT, 2012a, p.155)
A
Sociedade de
Normalização
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Fonte: Internet. |
Foucault
discorre sobre duas consequências desse bio-poder e suas
transformações, sendo a primeira a ruptura que ocorreu no discurso
científico e maneira pela qual a dicotômica problemática da vida e
do homem atravessou e redistribuiu a ordem da epistemê
clássica.
O motivo pelo qual o homem entrou em questão deve ser analisado na
forma de relação entre a vida e a história “que a situa fora da
história com suas imediações biológicas e, ao mesmo tempo, dentro
da historicidade humana, infiltrada por suas técnicas de saber e de
poder.” (FOUCAULT, 2012, p.156). Também na crescente
multiplicidade dos mecanismos políticos que com isso, vão atuar
sobre o corpo e todos os fenômenos que lhe constituem como sua
saúde, alimentação etc; e todo o seu espaço de existência. Outra
consequência desse bio-poder, segundo Foucault, é a importância
crescente da norma; antes a lei, representada pelo gládio, culminava
na morte. O signo da lei sempre será, por excelência, a morte,
mesmo que seja como último recurso. Mas um poder que se propõe a
gerir a vida necessitará de mecanismos reguladores e corretivos e
não mais o gládio3,
visto que a morte é apenas o que lhe escapa. O que irá de fato
estar em curso não é mais a morte, mas a distribuição dos vivos
em um campo de valor e utilidade.
Um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se manifestar em seu fausto mortífero, não tem que traçar uma linha que separa os súditos obedientes dos inimigos do soberano, opera distribuições em torno da norma. (FOUCAULT, 2012a, p. 157)
O
filósofo ainda assinala que não é a lei ou as instituições de
justiça que tendem a desaparecer, mas cada vez mais a lei funciona
como norma e as instituições vão se integrando ao contínuo dos
aparelhos de funções, que são principalmente reguladoras. O
resultado será a sociedade normalizadora, representada pela passagem
da lei, princípio jurídico encontrado no cerne no poder soberano,
para a norma é o resultado histórico dessa tecnologia de poder
centrada na vida4.
A norma é o elemento que irá circular entre a disciplina e a
regulamentação, entre o corpo e a população. “A sociedade de
normalização é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma
articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da
regulamentação.” (FOUCAULT, 2010, p. 2013).
O
Dispositivo de
Sexualidade
Segundo
Foucault, é sobre esse pano de fundo que poderá se compreender a
importância do sexo como foco da disputa política, pois ele se
encontra na encruzilhada, entre as duas esferas, ao longo das quais
se desenvolveu toda essa tecnologia política da vida, fazendo parte
das disciplinas do corpo (atua no individual) e pertencendo a
regulação das populações (por todos os efeitos globais que
induz). Inserindo-se nos dois eixos, através de controles e
vigilâncias contínuas e infinitas, de toda uma ordenação do
espaço útil, de toda uma série de exames médicos e psicológicos,
de todo um micropoder sobre o corpo e, ao mesmo tempo, de medidas
sólidas, cálculos estatísticos e intervenções que atuam sobre
todo o corpo social ou grupos sociais. “O sexo é acesso, ao mesmo
tempo, à vida do corpo e à vida da espécie. Servimo-nos dele como
matriz das disciplinas e princípio das regulações.” (FOUCAULT,
2012a, p. 159).
Foi
por esta razão, segundo Foucault, que no século XIX a sexualidade
foi analisada, esmiuçada em cada íntimo detalhe, em suas condutas,
nem mesmo os sonhos escaparam, instigaram suspeitas nas mínimas
mostras de loucura, indo até o limite da infância, tornando-se a
chave da individualidade – sendo os aspectos que lhe formam a
receita tanto para analisá-la, quanto para constituí-la.
Tornando-se objeto de operações políticas e intervenções
econômicas (procriação ou freio à procriação), de toda uma
série ideológica de campanhas de moralização e responsabilização,
servindo como uma espécie de termômetro da sociedade que indica seu
nível de força, sua energia política, vigor biológico.
Esse
investimento pode ser esboçado através da importância das quatro
linhas de ataque ao longo das quais a política do sexo avançou.
Sendo cada uma delas uma maneira de compor as técnicas disciplinares
com os procedimentos reguladores. São elas: 1) Sexualização
da criança: campanha
pela saúde da raça e sexualidade precoce apresentada como ameaça
epidêmica que poderia comprometer a saúde futura dos adultos e,
consequentemente, a sociedade de toda espécie; 2) Histerização
das mulheres: medicalização
de seus corpos e do seu sexo visto que dependia disso a saúde dos
filhos, além da solidez da família e a salvação da sociedade; 3)
Casal
malthusiano: forma
de controle ou incentivo à procriação; 4) Psiquiatrização
das perversões: natureza
reguladora, adestramento individual. Em síntese temos, nas palavras
de Foucault (2012a, p. 160): “De um modo geral, na junção entre o
“corpo” e a “população”, o sexo tornou-se o alvo central de
um poder que se organiza em torno da gestão da vida, mais do que da
ameaça de morte.”
Essa
tomada da sexualidade também representa uma transformação que
quebra com outro conhecido signo do poder soberano, segundo Foucault,
há muito o sangue constituía um elemento importante nos mecanismos
de poder, suas expressões e seus rituais. Em uma sociedade onde
predominavam as táticas de aliança que era a forma política do
soberano, a distinção de ordens e castas, o valor das linhagens, em
uma sociedade onde a fome, epidemias e violências tornavam a morte
intermitente, o sangue tinha uma das qualidades essenciais. Sua
importância se encontra, tanto no seu papel instrumental – poder
derramá-lo ou não, sua função na ordem do signo – o tipo de
sangue, a coragem de arriscar o próprio sangue, quanto na sua
precariedade – se é fácil de derramar, a possibilidade de
extinção, a possibilidade de se corromper.
Toda
esta mística, que Foucault denomina de sociedade do sangue, o poder
das honras de guerra e do temor da fome, das glórias da morte, tudo
isso passa pela simbólica do sangue. Mas o que temos com o
bio-poder, segundo Foucault, é a sociedade do “sexo”, a
sociedade “de sexualidade”, onde os dispositivos de poder se
ordenam ao corpo, à vida e aos seus fenômenos, a tudo que lhe diz
respeito, ao que a reforça, vigora, lhe capacita a dominar e suas
aptidões. É, segundo Foucault, a passagem da simbólica
do sangue para
a analítica
da sexualidade.
Saúde, progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o poder fala da sexualidade e para a sexualidade; quanto a esta, não é marca ou símbolo, é objeto e alvo. O que determina sua importância não é tanto sua raridade ou precariedade quanto sua insistência, sua presença insidiosa, o fato de ser, em toda a parte, provocada e temida. (FOUCAULT, 2012a, p.161)
Essa
nova forma de poder irá suscitar, esboçar a sexualidade com uma
função produtiva, numa eterna retomada de controle para que este
não escape. Com isso, Foucault não pretende afirmar, que essa
substituição do sangue pelo sexo seja resumida a essas
transformações que delimitam o limiar da nossa modernidade, mas
tentar encontrar as razões pelas quais a sexualidade muito longe de
ter sido reprimida foi sendo constantemente suscitada. Da lei
representada pela morte à sociedade de normalização; da simbólica
do sangue e do dispositivo de aliança à sociedade do sexo e do
dispositivo de sexualidade, essas são as principais transformações
que marcam a era do bio-poder.
A
Teoria Geral do
Sexo
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Figura
de Rob Gonsalves
|
Foucault
ainda salienta que apesar da analítica da sexualidade e da simbólica
do sexo pertencerem, pelo menos a primeira vista, a duas esferas
distintas, estas não acontecem sem sobreposições e interações, e
que de diversas formas a preocupação com o sangue e a lei é motivo
de obsessão da gestão sexualidade, colocando dois exemplos a esse
respeito, a saber: 1) o uso da temática do sangue a partir da
segunda metade do século XIX na formação do racismo de estado
usará como base um tipo de poder político exercido através do
dispositivo de sexualidade – havendo toda uma política do
povoamento, da família, do casamento, da educação e toda uma
diversidade de intervenções contínuas nos corpos, condutas, saúde,
etc. que serão justificadas por uma preocupação simbólica de
proteger a pureza do sangue e a glória da raça. 2) na outra ponta,
mas no mesmo período, fim do século XIX, tem-se um esforço teórico
para reinserir a temática da sexualidade no âmbito da lei e da
soberania, isso feito através da suspeita da psicanálise do que
poderia ser produtivo nestes mecanismos de poder que objetivavam
controlar e gerir o ambiente da sexualidade.
O
filósofo ainda levanta dois pontos acerca de sua análise que, por
um lado, o objetivo da sua análise foi mostrar de que forma são
articulados os dispositivos, corpo a corpo, fazer uma “‘história
dos corpos’ e da maneira como se investiu sobre o que neles há de
mais material, de mais vivo.” (FOUCAULT, 2012a, p. 165) E, por
outro lado, questiona se essa materialidade que tratamos não é de
fato a do sexo, e que se não seria contraditório pretender fazer
uma história da sexualidade no nível dos corpos sem tratar do que
seria o sexo? Partindo desta questão, Foucault sinaliza o
diagnóstico de como a ideia do sexo se constituiu através das mais
diversas estratégias de poder, e qual foi o seu papel nisso tudo,
partindo das grandes quatro linhas que, segundo Foucault,
desenvolveu-se a teoria geral do sexo que foi definida de três
maneiras: 1) como pertencente ao homem e em falta na mulher; 2)
constituindo o corpo da mulher ordenado à reprodução e
perturbador; e 3) infantil presente (anatomia) e de atividade ausente
(fisiologia) por finalidade reprodutora. Através destes fatores, e
de outros, se formou a teoria geral do sexo que define certo número
de funções no dispositivo de sexualidade.
Pode-se
perceber que tal teoria, exercendo certo número de funções no
dispositivo de sexualidade foi importante por: 1) permitir agrupar,
elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, etc. fazendo
o sexo funcionar como significante único e como significado
universal. 2) apresentar-se como função e latência, instinto e
sentido pôde marcar a linha de contato entre um saber sobre a
sexualidade humana e as ciências biológicas da reprodução; 3)
garantir uma reversão essencial, permitindo pensá-lo apenas como
lei e interdição. O papel mais prático do sexo fixado pelo
dispositivo de sexualidade é de que todos devem passar para ter
acesso a sua própria inteligibilidade à totalidade do corpo.
Foucault
cogita que a sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo
histórico: não sendo uma realidade subterrânea que se apreende com
dificuldade, mas a grande rede da superfície em que a estimulação
dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao
discurso, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se
uns aos outros, segundo grandes estratégias de saber e de poder.
Neste cenário, aponta que as relações de sexo tenham dado lugar,
em toda a sociedade, a um dispositivo de aliança: que era o sistema
de matrimônio, de fixação e desenvolvimento dos parentescos, com
os mecanismos de constrição que o garantem, mas com os saberes,
muitas vezes complexos que o requer, o dispositivo perdeu a
importância à medida que os processos econômicos e as estruturas
políticas passaram a não encontrar mais nele um instrumento
adequado. A partir do século XVIII as sociedades ocidentais modernas
inventaram e instalaram um novo dispositivo, o de sexualidade, que se
superpõe ao primeiro e que, sem o pôr de lado, contribui para
reduzir sua importância. O primeiro se estrutura em torno de um
sistema de regras, define o permitido e o proibido, o prescrito e o
ilícito, com objetivo de manter as leis que o regem; já o
dispositivo de sexualidade funciona com técnicas móveis e
polimorfas, engendrando uma extensão permanente dos domínios e das
formas de controle.
Considerações
Finais
Com
a análise foucaultiana podemos observar a entrada da vida na esfera
política, o uso dela para fins políticos. Num primeiro momento da
análise temos o velho poder soberano, a recoroação do rei através
do cadafalso, o signo do gládio, o poder da lei.
Com
o início da era do bio-poder teremos a administração da vida em
suas infinitas faces; o controle sobre a mesma dado tanto no âmbito
individual, através da anátomo-política das disciplinas; quanto no
âmbito global, através da biopolítica das populações.
E
a forma de acesso individual, e ao mesmo tempo social, será através
da sexualidade, através dela que poderá ser feita uma normalização
com um fim ótimo. Se antes a lei culminava na morte, como o
bio-poder a norma atua sobre a vida e a morte, é a última
possibilidade, é o que escapa. Através do corpo – sexo – se
cuida – controla – a população. O sexo é o alvo central de um
poder que se organiza em torno da vida mais do que da ameaça de
morte.
Por
muito tempo o sangue constituiu um elemento importante
nos mecanismos de poder, em suas manifestações e rituais, na
sociedade do sangue – onde predominavam os sistemas de aliança, a
forma política do soberano, a diferenciação de castas, o valor das
linhagens – se podia falar através do sangue, era uma realidade
com função simbólica. Mas o que se tem a partir desse processo é
a sociedade do sexo onde mecanismos de poder se dirigem ao corpo, à
vida ao que a faz proliferar, é o poder da sexualidade e para a
sexualidade, não mais um símbolo ou marca, mas um objetivo e seu
respectivo alvo.
Referências
Bibliográficas
CASTRO,
Edgardo. Introdução
a Foucault.
1ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
CASTRO,
Edgardo. Vocabulário
Foucault:
um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. 1ª Ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
FOUCAULT,
Michel. Em
defesa da sociedade:
curso no Collège de France (1975-1976). 2ª Ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2010.
FOUCAULT,
M. História da Sexualidade I: A
vontade de saber. 22ª
Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012a.
FOUCAULT,
Michel. Vigiar
e Punir:
nascimento da prisão.
40ª
Ed. Petrópolis: Vozes, 2012b.
1A
patria
potestas é
uma instituição do antigo Direito Civil romano, que só podia ser
exercido por uma pessoa do sexo masculino que fosse cidadão romano.
2Esse
poder, segundo Foucault, exercia-se de duas formas, a saber: 1) De
forma indireta,
em
caso de guerra, quando legitimamente o soberano pode pedir que seus
súditos defendessem o Estado; e 2) De forma direta,
quando
um de seus súditos se levanta contra o soberano, ele pode matá-lo
a título de castigo.
3O
substantivo Gládio pode significar tanto espada, quanto, poder ou
força.
4Foucault
afirma que, a partir desse momento histórico, começa a acontecer
uma regressão jurídica, “[...] as constituições escritas no
mundo inteiro a partir da Revolução Francesa, os Códigos
redigidos e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e
ruidosa não devem iludir-nos; são formas que tornam aceitável um
poder essencialmente normalizador.” (FOUCAULT, 2012a, p. 157)
Para citar este documento (ABNT/NBR 6023: 2002):
Trindade, Flávia Ferreira; Valeirão, Kelin: Direito e Dispositivo de Sexualidade: quando o sexo entra no jogo político. Praxis Jurídica, Ano III, N.º 03, 09.05.2016 (ISSN 2359-3059). Disponível em: <http://praxis-juridica.blogspot.com.br/2016/06/direito-e-dispositivo-de-sexualidade.html>. Acesso em:
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