domingo, 12 de junho de 2016

Direito e Dispositivo de Sexualidade: quando o sexo entra no jogo político

The Nightmare, by Johann Heinrich Füssli, 1781. 



Flávia Ferreira Trindade
Acadêmica do curso de licenciatura plena em filosofia da Universidade Federal de Pelotas.
Kelin Valeirão
Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas.


Para que possamos compreender o dispositivo de sexualidade, é crucial reportarmo-nos às transformações do período clássico. Segundo Foucault, por muito tempo um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte, originária da velha patria potestas romano1, concedia ao pai de família o poder sobre a vida de seus filhos, de sua mulher e de seus escravos, podendo lhes retirar já que fora ele que as havia “dado”. Foucault aponta que o direito de vida e morte da maneira como é formulado pelos teóricos clássicos é uma fórmula “bem atenuada” desse tipo de poder2. “O poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la.” (FOUCAULT, 2012a, p. 148)
O filósofo nos aponta que a forma de poder que se encontrava na época da soberania poderia ser representada pela frase “fazer morrer ou deixar viver”. Na época clássica haverá um deslocamento, surgindo um novo objetivo: gerir a vida. Resumindo: “fazer viver ou deixar morrer”; com isso a velha forma do “confisco” se torna apenas uma forma secundária juntamente com outras de função de incitação, reforço, controle, vigilância e organização das forças objetivando mais a sua produção do que a diminuição e destruição. Em outras palavras, tudo que antes se fazia em nome de um, o soberano, passa a ser feito em nome de uma população. Os mecanismos que se criam a partir daí e as guerras que se travam, são com o objetivo de gerir a vida, em nome da vida da população. “Essa morte, que se fundamentava no direito do soberano de defender ou pedir que o defendessem, vai parecer como o simples reverso do direito do corpo social garantir sua própria vida, mantê-la ou desenvolvê-la.” (FOUCAULT, 2012a, p. 148-149).
Porém, Foucault expõe que, justamente a partir do século XIX, nunca se viram guerras tão sangrentas, e com tão grandes proporções e regimes, fazendo holocaustos nas suas próprias populações. E que esse conhecido poder de morte é colocado agora como complemento de um poder que é exercido positivamente sobre a vida, empreendendo sua gestão, sua multiplicação, através de controles precisos e regulações de conjunto. E como as guerras são travadas em nome e em prol da existência de todos os massacres, segundo Foucault, se tornam vitais. “Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens.” (FOUCAULT, 2012a, p. 149). Segundo Foucault, quanto mais a tecnologia das guerras foi sendo centrada na destruição exaustiva, mais as tomadas de decisão que as iniciam e encerram são direcionadas em função da questão da sobrevivência.
O princípio: poder matar para poder viver, que sustentava a tática dos combates, tornou-se princípio de estratégia entre Estados; mas a existência em questão já não é aquela – jurídica – da soberania, é outra – biológica – de uma população. (FOUCAULT, 2012a, p. 149)

Foucault expõe que se o genocídio é “o sonho dos poderes modernos” não é por uma volta ao modo soberano de matar, mas por exercer no nível da vida e dos fenômenos da população. Os que morrem nas guerras substituem os que antes morriam no cadafalso, porém as razões se assemelham, com o poder com a função de gerir a vida não por razões humanitárias, mas pela razão de ser do poder e a lógica de seu exercício que se torna cada vez mais difícil o ritual da pena de morte. Nesse sentido, o filósofo questiona: “De que modo um poder viria a exercer suas mais altas prerrogativas e causar a morte se o seu papel mais importante é o de garantir, sustentar, reforçar multiplicar a vida e pô-la em ordem?” (FOUCAULT, 2012a, p. 150). Para essa nova forma de poder que se instaura a pena de morte seria, para Foucault, ao mesmo tempo, o limite, escândalo e uma contradição, logo, os que serão mortos àqueles que constituírem uma forma de perigo biológico para os outros.

Pode se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver a morte. Talvez seja assim que se explique esta desqualificação da morte, marcada pelo desuso dos rituais que a acompanhavam. (FOUCAULT, 2012a, p. 150)



A Era do Bio-Poder

Concretamente, esse poder que tem por finalidade gerir a vida, desenvolveu-se por volta da metade do séc. XVIII ocorrendo por um lado, através das disciplinas: anátomo política do corpo humano: corpo como máquina, adestramento, ampliação das aptidões, crescimento paralelo da docilidade utilidade e, por outro lado, formando-se um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, o que Foucault chama de biopolítica da população: centrada no corpo espécie, corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: tratando dos nascimentos e a mortalidade, nível da saúde, duração da vida, etc. Esses são os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida, o biopoder, a instalação – anatômica e biológica individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e os processos da vida – caracteriza esse poder que não é mais de matar, mas investir sobre a vida de cima a baixo, desenvolvendo inúmeras e diversas técnicas para obter a sujeição dos corpos e o controle das populações. Temos então a potência de morte que era o poder soberano ser absorvida pela administração dos corpos e a gestão e cálculo da vida, como desenvolvimento rápido das disciplinas nas mais diferentes esferas da sociedade – escolas, ateliês, fábricas – e também na esfera das práticas políticas e econômicas – natalidade/mortalidade, saúde, com objetivo de obter a sujeição dos corpos e o controle das populações. Com isso, segundo Foucault, abre-se a era do bio-poder, onde essas duas esferas ainda aparecem separadas, no século XVIII. Do lado das disciplinas temos instituições como, por exemplo, o exército ou as escolas, refletindo sobre as táticas, aprendizagens, educação e ordem da sociedade.

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essa mesmas forças (em termos políticos de obediência). (FOUCAULT, 2012b, p. 133-134)

Ao lado dos mecanismos de regulação referentes à população e demografia encontra-se a estimativa da relação entre recursos e habitantes, o cálculo das riquezas e de sua circulação, das vidas e de sua duração.

[...] uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em compensar seus efeitos. (FOUCAULT, 2010, p. 209)

Segundo Foucault, este bio-poder – através da introdução regulada dos corpos nos meios de produção e da ordenação dos fenômenos da população – foi um elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo. Mas, além disso, lhe foi necessário todo um desenvolvimento dos aparelhos de Estado, todos esses mecanismos de anátomos e de bio-política funcionaram no nível dos processos econômicos, e de tudo que se refere ao seu andamento, em fatores de segregação da sociedade e na garantia das relações de dominação e hegemonia; na relação entre acúmulo de homens e de capital, todos esses processos só foram possíveis através do bio-poder. É o uso e manutenção dos indivíduos, o investimento e gestão sobre os corpos vivos e distribuição de suas forças para o desenvolvimento de toda uma série de processos políticos e econômicos. Temos assim, segundo Foucault, a entrada da vida na história, sendo entendida como a introdução dos fenômenos próprios a ela numa ordem de saber e de poder, no terreno das técnicas políticas. O filósofo salienta que de forma alguma pretende afirma que nesse período foi produzido o primeiro contato da vida com a história, mas agora a sociedade ocidental gradativamente aprende o que é ser uma “espécie viva num mundo vivo”, ter condições de vida, saúde, em um espaço em que elas podem ser administradas e (re)produzidas.

Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo do controle do saber e de intervenção do poder. (FOUCAULT, 2012a, p.155)


A Sociedade de Normalização
Fonte: Internet.

Foucault discorre sobre duas consequências desse bio-poder e suas transformações, sendo a primeira a ruptura que ocorreu no discurso científico e maneira pela qual a dicotômica problemática da vida e do homem atravessou e redistribuiu a ordem da epistemê clássica. O motivo pelo qual o homem entrou em questão deve ser analisado na forma de relação entre a vida e a história “que a situa fora da história com suas imediações biológicas e, ao mesmo tempo, dentro da historicidade humana, infiltrada por suas técnicas de saber e de poder.” (FOUCAULT, 2012, p.156). Também na crescente multiplicidade dos mecanismos políticos que com isso, vão atuar sobre o corpo e todos os fenômenos que lhe constituem como sua saúde, alimentação etc; e todo o seu espaço de existência. Outra consequência desse bio-poder, segundo Foucault, é a importância crescente da norma; antes a lei, representada pelo gládio, culminava na morte. O signo da lei sempre será, por excelência, a morte, mesmo que seja como último recurso. Mas um poder que se propõe a gerir a vida necessitará de mecanismos reguladores e corretivos e não mais o gládio3, visto que a morte é apenas o que lhe escapa. O que irá de fato estar em curso não é mais a morte, mas a distribuição dos vivos em um campo de valor e utilidade.

Um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se manifestar em seu fausto mortífero, não tem que traçar uma linha que separa os súditos obedientes dos inimigos do soberano, opera distribuições em torno da norma. (FOUCAULT, 2012a, p. 157)

O filósofo ainda assinala que não é a lei ou as instituições de justiça que tendem a desaparecer, mas cada vez mais a lei funciona como norma e as instituições vão se integrando ao contínuo dos aparelhos de funções, que são principalmente reguladoras. O resultado será a sociedade normalizadora, representada pela passagem da lei, princípio jurídico encontrado no cerne no poder soberano, para a norma é o resultado histórico dessa tecnologia de poder centrada na vida4. A norma é o elemento que irá circular entre a disciplina e a regulamentação, entre o corpo e a população. “A sociedade de normalização é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamentação.” (FOUCAULT, 2010, p. 2013).

O Dispositivo de Sexualidade

Segundo Foucault, é sobre esse pano de fundo que poderá se compreender a importância do sexo como foco da disputa política, pois ele se encontra na encruzilhada, entre as duas esferas, ao longo das quais se desenvolveu toda essa tecnologia política da vida, fazendo parte das disciplinas do corpo (atua no individual) e pertencendo a regulação das populações (por todos os efeitos globais que induz). Inserindo-se nos dois eixos, através de controles e vigilâncias contínuas e infinitas, de toda uma ordenação do espaço útil, de toda uma série de exames médicos e psicológicos, de todo um micropoder sobre o corpo e, ao mesmo tempo, de medidas sólidas, cálculos estatísticos e intervenções que atuam sobre todo o corpo social ou grupos sociais. “O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie. Servimo-nos dele como matriz das disciplinas e princípio das regulações.” (FOUCAULT, 2012a, p. 159).
Foi por esta razão, segundo Foucault, que no século XIX a sexualidade foi analisada, esmiuçada em cada íntimo detalhe, em suas condutas, nem mesmo os sonhos escaparam, instigaram suspeitas nas mínimas mostras de loucura, indo até o limite da infância, tornando-se a chave da individualidade – sendo os aspectos que lhe formam a receita tanto para analisá-la, quanto para constituí-la. Tornando-se objeto de operações políticas e intervenções econômicas (procriação ou freio à procriação), de toda uma série ideológica de campanhas de moralização e responsabilização, servindo como uma espécie de termômetro da sociedade que indica seu nível de força, sua energia política, vigor biológico.
Esse investimento pode ser esboçado através da importância das quatro linhas de ataque ao longo das quais a política do sexo avançou. Sendo cada uma delas uma maneira de compor as técnicas disciplinares com os procedimentos reguladores. São elas: 1) Sexualização da criança: campanha pela saúde da raça e sexualidade precoce apresentada como ameaça epidêmica que poderia comprometer a saúde futura dos adultos e, consequentemente, a sociedade de toda espécie; 2) Histerização das mulheres: medicalização de seus corpos e do seu sexo visto que dependia disso a saúde dos filhos, além da solidez da família e a salvação da sociedade; 3) Casal malthusiano: forma de controle ou incentivo à procriação; 4) Psiquiatrização das perversões: natureza reguladora, adestramento individual. Em síntese temos, nas palavras de Foucault (2012a, p. 160): “De um modo geral, na junção entre o “corpo” e a “população”, o sexo tornou-se o alvo central de um poder que se organiza em torno da gestão da vida, mais do que da ameaça de morte.”
Essa tomada da sexualidade também representa uma transformação que quebra com outro conhecido signo do poder soberano, segundo Foucault, há muito o sangue constituía um elemento importante nos mecanismos de poder, suas expressões e seus rituais. Em uma sociedade onde predominavam as táticas de aliança que era a forma política do soberano, a distinção de ordens e castas, o valor das linhagens, em uma sociedade onde a fome, epidemias e violências tornavam a morte intermitente, o sangue tinha uma das qualidades essenciais. Sua importância se encontra, tanto no seu papel instrumental – poder derramá-lo ou não, sua função na ordem do signo – o tipo de sangue, a coragem de arriscar o próprio sangue, quanto na sua precariedade – se é fácil de derramar, a possibilidade de extinção, a possibilidade de se corromper.
Toda esta mística, que Foucault denomina de sociedade do sangue, o poder das honras de guerra e do temor da fome, das glórias da morte, tudo isso passa pela simbólica do sangue. Mas o que temos com o bio-poder, segundo Foucault, é a sociedade do “sexo”, a sociedade “de sexualidade”, onde os dispositivos de poder se ordenam ao corpo, à vida e aos seus fenômenos, a tudo que lhe diz respeito, ao que a reforça, vigora, lhe capacita a dominar e suas aptidões. É, segundo Foucault, a passagem da simbólica do sangue para a analítica da sexualidade.

Saúde, progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o poder fala da sexualidade e para a sexualidade; quanto a esta, não é marca ou símbolo, é objeto e alvo. O que determina sua importância não é tanto sua raridade ou precariedade quanto sua insistência, sua presença insidiosa, o fato de ser, em toda a parte, provocada e temida. (FOUCAULT, 2012a, p.161)

Essa nova forma de poder irá suscitar, esboçar a sexualidade com uma função produtiva, numa eterna retomada de controle para que este não escape. Com isso, Foucault não pretende afirmar, que essa substituição do sangue pelo sexo seja resumida a essas transformações que delimitam o limiar da nossa modernidade, mas tentar encontrar as razões pelas quais a sexualidade muito longe de ter sido reprimida foi sendo constantemente suscitada. Da lei representada pela morte à sociedade de normalização; da simbólica do sangue e do dispositivo de aliança à sociedade do sexo e do dispositivo de sexualidade, essas são as principais transformações que marcam a era do bio-poder.

A Teoria Geral do Sexo
Figura de Rob Gonsalves

Foucault ainda salienta que apesar da analítica da sexualidade e da simbólica do sexo pertencerem, pelo menos a primeira vista, a duas esferas distintas, estas não acontecem sem sobreposições e interações, e que de diversas formas a preocupação com o sangue e a lei é motivo de obsessão da gestão sexualidade, colocando dois exemplos a esse respeito, a saber: 1) o uso da temática do sangue a partir da segunda metade do século XIX na formação do racismo de estado usará como base um tipo de poder político exercido através do dispositivo de sexualidade – havendo toda uma política do povoamento, da família, do casamento, da educação e toda uma diversidade de intervenções contínuas nos corpos, condutas, saúde, etc. que serão justificadas por uma preocupação simbólica de proteger a pureza do sangue e a glória da raça. 2) na outra ponta, mas no mesmo período, fim do século XIX, tem-se um esforço teórico para reinserir a temática da sexualidade no âmbito da lei e da soberania, isso feito através da suspeita da psicanálise do que poderia ser produtivo nestes mecanismos de poder que objetivavam controlar e gerir o ambiente da sexualidade.
O filósofo ainda levanta dois pontos acerca de sua análise que, por um lado, o objetivo da sua análise foi mostrar de que forma são articulados os dispositivos, corpo a corpo, fazer uma “‘história dos corpos’ e da maneira como se investiu sobre o que neles há de mais material, de mais vivo.” (FOUCAULT, 2012a, p. 165) E, por outro lado, questiona se essa materialidade que tratamos não é de fato a do sexo, e que se não seria contraditório pretender fazer uma história da sexualidade no nível dos corpos sem tratar do que seria o sexo? Partindo desta questão, Foucault sinaliza o diagnóstico de como a ideia do sexo se constituiu através das mais diversas estratégias de poder, e qual foi o seu papel nisso tudo, partindo das grandes quatro linhas que, segundo Foucault, desenvolveu-se a teoria geral do sexo que foi definida de três maneiras: 1) como pertencente ao homem e em falta na mulher; 2) constituindo o corpo da mulher ordenado à reprodução e perturbador; e 3) infantil presente (anatomia) e de atividade ausente (fisiologia) por finalidade reprodutora. Através destes fatores, e de outros, se formou a teoria geral do sexo que define certo número de funções no dispositivo de sexualidade.
Pode-se perceber que tal teoria, exercendo certo número de funções no dispositivo de sexualidade foi importante por: 1) permitir agrupar, elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, etc. fazendo o sexo funcionar como significante único e como significado universal. 2) apresentar-se como função e latência, instinto e sentido pôde marcar a linha de contato entre um saber sobre a sexualidade humana e as ciências biológicas da reprodução; 3) garantir uma reversão essencial, permitindo pensá-lo apenas como lei e interdição. O papel mais prático do sexo fixado pelo dispositivo de sexualidade é de que todos devem passar para ter acesso a sua própria inteligibilidade à totalidade do corpo.
Foucault cogita que a sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não sendo uma realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas a grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo grandes estratégias de saber e de poder. Neste cenário, aponta que as relações de sexo tenham dado lugar, em toda a sociedade, a um dispositivo de aliança: que era o sistema de matrimônio, de fixação e desenvolvimento dos parentescos, com os mecanismos de constrição que o garantem, mas com os saberes, muitas vezes complexos que o requer, o dispositivo perdeu a importância à medida que os processos econômicos e as estruturas políticas passaram a não encontrar mais nele um instrumento adequado. A partir do século XVIII as sociedades ocidentais modernas inventaram e instalaram um novo dispositivo, o de sexualidade, que se superpõe ao primeiro e que, sem o pôr de lado, contribui para reduzir sua importância. O primeiro se estrutura em torno de um sistema de regras, define o permitido e o proibido, o prescrito e o ilícito, com objetivo de manter as leis que o regem; já o dispositivo de sexualidade funciona com técnicas móveis e polimorfas, engendrando uma extensão permanente dos domínios e das formas de controle.

Considerações Finais

Com a análise foucaultiana podemos observar a entrada da vida na esfera política, o uso dela para fins políticos. Num primeiro momento da análise temos o velho poder soberano, a recoroação do rei através do cadafalso, o signo do gládio, o poder da lei.
Com o início da era do bio-poder teremos a administração da vida em suas infinitas faces; o controle sobre a mesma dado tanto no âmbito individual, através da anátomo-política das disciplinas; quanto no âmbito global, através da biopolítica das populações.
E a forma de acesso individual, e ao mesmo tempo social, será através da sexualidade, através dela que poderá ser feita uma normalização com um fim ótimo. Se antes a lei culminava na morte, como o bio-poder a norma atua sobre a vida e a morte, é a última possibilidade, é o que escapa. Através do corpo – sexo – se cuida – controla – a população. O sexo é o alvo central de um poder que se organiza em torno da vida mais do que da ameaça de morte.
Por muito tempo o sangue constituiu um elemento importante nos mecanismos de poder, em suas manifestações e rituais, na sociedade do sangue – onde predominavam os sistemas de aliança, a forma política do soberano, a diferenciação de castas, o valor das linhagens – se podia falar através do sangue, era uma realidade com função simbólica. Mas o que se tem a partir desse processo é a sociedade do sexo onde mecanismos de poder se dirigem ao corpo, à vida ao que a faz proliferar, é o poder da sexualidade e para a sexualidade, não mais um símbolo ou marca, mas um objetivo e seu respectivo alvo.

Referências Bibliográficas

CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. 1ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
CASTRO, Edgardo. Vocabulário Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. 1ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A vontade de saber. 22ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012a.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 40ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2012b.


1A patria potestas é uma instituição do antigo Direito Civil romano, que só podia ser exercido por uma pessoa do sexo masculino que fosse cidadão romano.
2Esse poder, segundo Foucault, exercia-se de duas formas, a saber: 1) De forma indireta, em caso de guerra, quando legitimamente o soberano pode pedir que seus súditos defendessem o Estado; e 2) De forma direta, quando um de seus súditos se levanta contra o soberano, ele pode matá-lo a título de castigo.
3O substantivo Gládio pode significar tanto espada, quanto, poder ou força.

4Foucault afirma que, a partir desse momento histórico, começa a acontecer uma regressão jurídica, “[...] as constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução Francesa, os Códigos redigidos e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem iludir-nos; são formas que tornam aceitável um poder essencialmente normalizador.” (FOUCAULT, 2012a, p. 157)




Para citar este documento (ABNT/NBR 6023: 2002):

Trindade, Flávia Ferreira; Valeirão, Kelin: Direito e Dispositivo de Sexualidade: quando o sexo entra no jogo político. Praxis Jurídica, Ano III, N.º 03, 09.05.2016 (ISSN 2359-3059). Disponível em: <http://praxis-juridica.blogspot.com.br/2016/06/direito-e-dispositivo-de-sexualidade.html>. Acesso em:


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