terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O Ministério Público e o Princípio do Promotor natural

Joseph Poelaert (1817-1879): Palais de Justice de Bruxelles. Fonte: Internet.

Marcos William Leite de Oliveira

Promotor de Justiça


Monografia apresentada ao curso de especialização em Direito Processual Penal da Escola Superior do Ministério Público, por Marcos William Leite de Oliveira, como requisito para obtenção do título de Especialista, concedido pela Universidade Federal do Ceará, tendo como orientadora a Mestra Mana Magnólia Barbosa da Silva.

Combatendo o arbítrio, insurgindo-se contra os que violam, com prepotência, as franquias individuais, transformando o protesto de vítimas indefesas em ação realizadora da Justiça, repudiando as leis injustas, porque desvinculadas dos anseios e do consentimento dos governados, em assim agindo, o Ministério Público terá dado o testemunho que a Nação dele espera.

Resumo

Pretende este trabalho aprofundar o tema sobre o Ministério Público e o princípio do promotor natural, demonstrando ser este um postulado de cunho constitucional, que visa, sobretudo, garantir ao cidadão o direito de se ver processado pela autoridade competente, no caso um membro do Parquet previamente designado por instrumento legal. Demonstraremos, outrossim, que aludido princípio garante ao membro do Ministério Público o pleno exercício de suas relevantíssimas funções outorgadas pela Lex Fundamentalis, que tem como destinatário maior a própria sociedade.


1. Introdução

A presente monografia elaborada para atender ao compromisso com uma obrigação curricular para a conclusão do Curso de Especialização em Direito Processual Penal, é um estudo sobre o Ministério Público e o princípio do promotor natural.

Entendemos que seria de boa técnica, antes de adentrarmos ao cerne do tema proposto - princípio do promotor natural - traçar noções gerais a respeito dos “princípios” visto como espécies do gênero normas jurídicas. Aqui concluiremos que, gozando de coercitibilidade e determinação, os princípios fixam comportamentos genéricos a serem seguidos pelo corpo coletivo otimizando valores e fundamentos que contornam a nuance de determinada coletividade, inclusive fortalecendo suas instituições máximas.

Em seguida abordaremos linhas gerais sobre o Ministério Público, instituição umbilicalmente ligado ao princípio estudado, notadamente no que diz respeito a sua origem, noção e funções. E assim o faremos por perceber que o entendimento perfeito do postulado do promotor natural só será pleno se compreendermos primeiro o Ministério Público, e o entendimento contemporâneo deste, o delineamento de sua nova identidade e a definição do papel que deve cumprir numa sociedade democrática de massa, passam, necessariamente, pela investigação histórica da instituição.

Ainda aprofundado o conhecimento sobre o Ministério Público, no capítulo seguinte enveredaremos nossa abordagem no que diz respeito ao posicionamento constitucional do Parquet. Esta é uma questão que tem provocado bastante discussão na doutrina, sendo objeto de apurada análise, não só pelas constantes alterações no texto constitucional, mas também pela transformação evolutiva jurídico-social que sofreu a instituição, culminando com o moderno texto de 1988.

Neste âmbito de discussão, questão controversa é saber se as funções do Ministério Público se prendem ao Poder Legislativo (como fiscal da lei), se ao Judiciário (pois normalmente atua junto dele - opção da Constituição de 1967), se ao Executivo (pois sua tarefa é administrativa - opção da Carta de 1969), ou se em título ou capítulo à parte (como na CF de 1934, de 1946 e na de 1988).
John William Godward (1893): A Priestess. Fonte: Internet

Concluiremos que esta é uma questão de somenos e que, garantida efetivamente a sua independência, a colocação constitucional do Ministério Público é secundária, de interesse quase meramente teórico.
Em seguinte veremos que mais importante que a posição neste ou naquele capítulo constitucional, são os instrumentos, garantias e impedimentos efetivamente conferidos à instituição e a seus membros, para que bem desempenhe suas funções, com liberdade e independência. Assim, a independência do Ministério Público não decorrerá basicamente de colocá-lo neste ou naquele título ou capítulo na Constituição, nem de denominá-lo Poder de Estado; antes dependerá das garantias e instrumentos de atuação conferidos à instituição e aos seus membros, e, naturalmente, dos homens que a integrem.
Ainda buscando conhecer melhor o Ministério Público faremos uma abordagem sobre sua destinação constitucional, onde veremos que com a reconstrução da ordem constitucional, emergiu o Ministério Público sob o signo da legitimidade democrática. Ampliaram-se-lhe as atribuições; dilatou-se-lhe a competência; reformulou-se-lhe a fisionomia institucional; conferiram-se-lhe os meios necessários à consecução de sua destinação constitucional, atendendo-se, finalmente, a antiga reivindicação da própria sociedade.

Esse novo perfil institucional traduz, de modo expressivo, um dos aspectos mais importante da destinação constitucional do Ministério Público, agora investido, por efeito de soberana deliberação da Assembléia Nacional Constituinte, da inderrogável atribuição de velar pela intangibilidade e integridade da ordem democrática.

Por fim abordaremos o tema central: o princípio do promotor natural.

Este consiste na existência de um órgão do Ministério Público anteriormente previsto pela lei para oficiar nos casos que sejam afetos à instituição.

O postulado do promotor natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei.

No início do estudo, sustentamos que o princípio do promotor natural tem sua base constitucional ancorada em quatro fundamentos básicos: o devido processo legal (art. 5o, Llll, da CF), o direito do cidadão de ser processado pela autoridade competente (art. 5o, LIV), a independência funcional (art. 127, § 1o) e a inamovibilidade (art. 128, § 5o, I, “a”). A partir de então abordaremos cada um dos fundamentos citados.

No final faremos uma breve abordagem sobre pontos polêmicos envolvendo o princípio do promotor natural, que ainda não são consenso na doutrina e na jurisprudência.

Reconhecemos que o presente estudo em nada tem de inédito. Pelo contrário, trata-se de um tema bastante estudado, principalmente pelos membros do Ministério Público, mas que tem por objetivo servir como mais um subsídio para aqueles que pretendem aprofundá-lo, e assim alçar vôos mais altos no estudo desta matéria de importância ímpar para garantia do pleno exercício ministerial.


2. Breve Estudo dos Princípios


Ao iniciarmos esta dissertação sobre o princípio do promotor natural, entendemos de bom alvitre traçarmos noções gerais a respeito dos “princípios” visto como espécies do gênero normas jurídicas.

Importante salientar que, tradicionalmente, estabelecia-se uma diferenciação técnica a respeito de normas e princípios.

Noberto Bobbio, citado por Ruy Samuel Espíndola1 em sua Teoria do Ordenamento Jurídico, elucida a questão, aclamando a normatividade dos princípios, ao dizer:

Os princípios gerais são, ao meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. O nome de princípio induz em engano, tanto que é velha questão entre juristas se os princípios são ou não são normas. Para mim não hã dúvida: os princípios gerais são normas como todas as demais. E esta é a tese sustentada também pelo estudioso que mais amplamente se ocupou da problemática, ou seja, Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos vêm a ser dois e ambos são válidos: antes de tudo, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um processo de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio de espécies animais, obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são abstraídos e adotados é aquela mesma que é cumprida por todas as normas, isto é função de regular um caso. Para regular um comportamento não regulado, é claro: mas agora servem ao mesmo fim para que servem as normas expressas”.

Deste modo, pode se afirmar que, hodiernamente, a moderna visão metodológica elenca os princípios como uma espécie do gênero normas, juntamente com as denominadas regras.

Para indicarmos os caracteres básicos dos chamados “princípios”, iremos confrontá-los com a outra espécie de normas existentes - as regras.
Segundo J. J. Gomes Canotilho2, os critérios para tal diferenciação consistem em:
  1. Grau de abstração;
  2. Caráter de fundamentalidade;
  3. Proximidade da idéia de direito;
  4. Natureza normogenética e
  5. Grau de determinabilidade.
Pelo critério do “Grau de abstração", os princípios gozam de generalidade mais ampla que as demais regras de direito, sendo mais abstratos, elencando valores e previsões aplicáveis a uma quase totalidade de sujeitos indeterminados. Já as regras jurídicas, enquanto espécie de “normas”, apresentam maior concretude e palpabilidade ao valorarem questões com níveis de precisão e determinabilidade mais amplos.
Pelo “Caráter de fundamentabilidade”, os princípios, notadamente os chamados “princípios constitucionais”, ocupam posição hierarquicamente superior à demais regras de direito. - seriam eles “normas de natureza”3.

Quanto à “Proximidade da idéia de direito”, os principieis refletem, com maior profundidade, valores ligados à necessária noção de "justiça” ou à própria sensibilidade quanto ao alcance do Direito4
Já pela sua “Natureza normogenética", os princípios são verdadeiramente fundamentos de regras, constituindo-se a ratio daquelas5

Segundo o que nomeia o jurista lusitano de “Grau de determinabilidade”, os princípios, "por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? do juiz?)”6, diante de uma situação litigiosa. As regras não. Podem ser aplicadas diretamente.
Como os princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas”7, os autores contemporâneos são quase unânimes em agregar a eles a idéia de “otimização” quanto àquelas possibilidades, pois apresentariam uma roupagem de conteúdo amplo e extensivo, determinando a realização de um valor ou de uma idéia consagrada no sistema normativo de um povo.
Como já referido, princípios são normas ao lado das regras jurídicas e, como normas, refletem e exalam a estrutura peculiar àquelas.
Gozando de coercitibilidade e determinação, os princípios fixam comportamentos genéricos a serem seguidos pelo corpo coletivo otimizando valores e fundamentos que contornam a nuance de determinada coletividade, inclusive fortalecendo suas instituições máximas.
A grande questão que se coloca é como implementar essa otimização, como concretizá-la.
É necessário que se parta, então da idéia de Direito visto como um sistema aberto de princípios e regras, portanto, de normas jurídicas.
O Sistema Jurídico é um sistema aberto, não fechado. Aberto no sentido que é incompleto, evolui e se modifica8

Essa manifesta sistemática aberta envolve necessariamente as duas espécies de normas jurídicas: regras e princípios, pelo fato de que, ao considerarmos o Direito como um sistema unicamente composto por princípios ou regras, além de impossibilitarmos uma visão jurídica fática social, o condenaríamos à estagnação, contrariando o seu dinamismo natural. Além disso, seria limitado pela tentativa absurda e irreal de tipificar todos os infinitos comportamentos humanos de maneira estreita e fechada (regras) ou alargar as possibilidades de maneira a gerar instabilidade e desprezo aos valores jurídicos (princípios).



Deve, pois, o Direito ser visto como sistema aberto de normas, ou seja, dotado de mecanismo normativos menos abstratos, que fixam comportamentos, aplaudindo-os ou vedando-os, capazes de manter a segurança societária - regras jurídicas - bem como, gozando de instituto amplo e mais abstrato, caracterizador de valores eleitos pelo seio social como necessários ao desenvolvimento humano, que, em conjunto com as ditas regras, faria o Direito caminhar para a concretização de seu real fundamento, qual seja, a busca de uma ordem social e jurídica justa.
Nessa visão, o Direito, por si só, é dinâmico. Nunca se esgota em si mesmo. Sendo um fato ou um fenômeno social, renasce a cada dia, muitas vezes e com novas formas, nova significação e novos objetivos. Tenta esgotar todas as previsões acerca
O Direito deve ser pensado sistematicamente e, na visão de Eros Grau9, pensar o Direito como sistema significa supor:
  1. ordenação interior; e
  2. unidade de sentido.
No Direito, dominado pelos sentidos axiológico e teleológico, a idéia de ordenação conduz à de adequação: tanto o legislador como o juiz devem tomar adequadamente os dados, axiológicos, do direito”10

Encerra suas considerações afirmando:
aí cuidar-se, no caso do direito, de adequação valorativa11
Como valorar significa atribuir uma característica ou finalidade a determinado acontecimento fático sócio-humano, uma vez valorado, positiva ou negativamente, tal circunstância gera na coletividade o anseio de normatizá-lo, o que se dará mediante elaboração de regras ou de princípios, espécies do gênero “normas jurídicas” que, necessariamente, devem se complementar.
Diante dessa complementaridade necessária entre as espécies de normas jurídicas e a busca, através dos princípios, da plena realização de justiça e plena implementação dos valores aclamados pelos homens, chegamos ao ponto de partida da questão suscitada: como otimizar os princípios?
A resposta pode ser dada a partir da interação princípio-regra acima narrada.
Explica-se:
À medida em que os princípios gozam de uma amplitude abstrata, comprometida com a razão de ser do Direito, estimulam no legislador ordinário a elaboração de diplomas legais que atentem ao conteúdo principiológico motivador do Estado, de suas instituições e de suas finalidades, qual seja, o bem comum.
Do ponto de vista processual, a otimização dos princípios dar-se-ia pela aplicação direta dos mesmos aos casos concretos, em esforço hermenêutico do juiz, o qual, deparando-se com um valor violado ou a ser protegido na lide, utilizaria o princípio garantido correspondente, sentenciando o feito. A função ou atividade jurisdicional teria, portanto, o importante papel de otimizar princípios.

Em caso de choque entre um princípio e uma regra, deve-se optar pelo primeiro por ser, segundo a sua “natureza normogenética”, pressuposto daquela, seu fundamento.

Diante de um aparente conflito entre princípios, o aplicador utilizaria critérios de “pesos e medidas", ao passo que balanceando os valores em jogo no caso litigioso, otimizaria aquele mais relevante, aplicando-lhe o princípio correspondente. No dizer de Canotilho,
princípios coexistem, as regras antinómicas, excluem-se12

Eis os breves traços da chamada “principiologia”, o estudo dos princípios do Direito no Brasil que busca, através da idéia de sua otimização, aproximar o legislador e o juiz das reais necessidades sociais, uma vez que tais espécies de normas jurídicas refletem nada mais do que a evolução e o dinamismo da coletividade, a qual considera o Direito um fato social, um fenômeno interativo e representativo da vontade humana, deduzida através de uma incessante busca pelo valor fonte de todos os valores: JUSTIÇA.

3. Ministério Público - Origem, Noção e Funções


3.1 Origem



Inserido num contexto histórico, o Ministério Público desempenhou sempre um papel relevante, embora isto somente tenha sido percebido pelos juristas nestes últimos tempos. Pela história e através da história o jurista terá uma visão clara da instituição e compreenderá as razões últimas de sua atuação atual.
Daí porque o entendimento do Ministério Público contemporâneo, o delineamento de sua nova identidade e a definição do papel que deve cumprir numa sociedade democrática de massa, e por conseguinte a compreensão profunda do princípio objeto deste estudo, passam, necessariamente, pela investigação histórica da instituição.
Não há consenso sobre a origem do Ministério Público. Alguns doutrinadores vão buscar as origens remotas do Ministério Público na civilização egípcia e na antiguidade clássica, menos com a intenção de encontrar institutos com o perfil formalmente adequado à instituição que hoje conhecemos, mas no sentido de identificar em alguns cargos e funções públicas atribuições assemelhadas àquelas destinadas ao Ministério Público, quando, modernamente, foi reconhecido como instituição integrante da organização política do Estado.
Todos relatam que no Egito antigo, há mais de 4000 anos, teria existido a figura do magiai - procurador-do-rei — que compunha um corpo de funcionários, com atribuições na esfera da repressão penal, para castigar os rebeldes, reprimir os violentos, proteger os cidadãos pacíficos, formalizar acusações e participar das instruções probatórias na busca da verdade, bem como na esfera cível, para defender determinadas pessoas, como órfãos e viúvas.
Relatam ainda que acusadores públicos (temóstetas), responsáveis pelo exercício do direito de acusação, teriam existido na Grécia clássica. Em Roma, os praefectus urbis, os procuratores caesaris, o praetor fiscalis, os curiosi, o irenarcha, os stazionarii, são tidos como precursores do Ministério Público, alguns com função na área fiscal, outros na área de repressão a criminosos.


Kaisser Otto.

Há, no entanto, doutrinadores que rechaçam, peremptoriamente, a possibilidade de ter existido na Antiguidade qualquer instituição ou função pública que se assemelhasse ao Ministério Público. Para essa corrente, que apenas admite as origens próximas da instituição, o Ministério Público nasceu no século XIII, na França, com a consolidação, em 1269, do monopólio jurisdicional da realeza ("Estatuto de São Luís”), foi reconhecido formalmente pela Ordonnance de Felipe, o Belo, datada de 25 de março de 1303, e ganhou contornos definitivos com a legislação pós-revolucionária.
A Revolução Francesa estruturou mais adequadamente o Ministério Público, enquanto instituição, ao conferir garantias a seus integrantes; foram, porém, os textos napoleônicos que instituíram o Ministério Público que a França veio a conhecer na atualidade.
Inegável é a influência da doutrina francesa na história do Ministério Público, tanto que, mesmo entre nós, ainda se usa frequentemente a expressão parquet, para referir-se à instituição. Tal expressão, que significa assoalho, provém da tradição francesa, assim como magistrature débout (magistratura de pé) e les gens du roi (as pessoas do rei). Os procuradores do rei, antes de adquirirem condição de magistrados e terem assento a seu lado, no estrado, tiveram assento sobre o assoalho da sala de audiências.
A primeira referência explícita ao promotor de justiça consta das Ordenações Manuelinas, que atribuiu à nova figura o papel de fiscalizar o cumprimento da lei e de sua execução. Mas as Ordenações Filipinas prevê, ao lado do Promotor de Justiça da Casa de Suplicação, outras figuras - Procurador dos Feitos da Coroa, Procurador dos Feitos da Fazenda e o Solicitador da Justiça da Casa da Suplicação - que abarcam funções que seriam, afinal, exercidas pelo Ministério Público. Ao Promotor de Justiça da Casa de Suplicação, nomeado pelo rei, atribuiu não somente a função de fiscalizar o cumprimento da lei como também a de formular a acusação criminal contra aqueles que seriam submetidos aos processos da Casa de Suplicação.

No que concerne ao Ministério Público brasileiro, este evoluiu a partir do direito lusitano, ainda que na França tenha surgido contemporaneamente com o do Direito português, sendo certo que a instituição “não surgiu de repente, num só lugar, por força de algum ato legislativo. Formou-se lenta e progressivamente, em resposta às. exigências históricas13.

3.2 Noção



O Ministério Público, nos termos do art. 127 da Constituição Federal, é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, o Ministério Público é, na sociedade moderna, a instituição destinada à preservação dos valores fundamentais do Estado enquanto comunidade.

O Ministério Público não é órgão do governo, nem do Poder Executivo, é órgão do Estado, dotado de especiais garantias para desempenhar funções ativas ou interventivas, seja quando seus membros se encarregam da persecução penal, deduzindo em juízo a pretensão punitiva do Estado e postulando a repressão ao crime (pois este é um atentado aos valores fundamentais da sociedade), seja quando no juízo civil os curadores se ocupam da defesa de certas instituições (registros públicos, fundações, família), de certos bens e valores fundamentais (meio-ambiente, valores artísticos, estético, históricos, paisagísticos), ou de certas pessoas (consumidores, ausentes, incapazes, trabalhadores acidentados no trabalho).


3.2 Funções



O Estado contemporâneo assume por missão garantir ao homem, como categoria universal e eterna, a preservação de sua condição humana, mediante o acesso aos bens necessários a uma existência digna - e um dos organismos de que dispõe para realizar essa função é o Ministério Público, tradicionalmente apontado como instituição de proteção aos fracos (fraqueza que vem de diversas circunstâncias, como a idade, estado intelectual, inexperiência, pobreza, impossibilidade de agir ou compreender) e que hoje desponta como agente estatal predisposto à tutela de bens e interesses coletivos ou difusos.
A Constituição Federal de 1988 ampliou sobremaneira as funções do Ministério Público, transformando-o em um verdadeiro defensor da sociedade, tanto no campo penal com a titularidade exclusiva da ação penal pública, quanto no campo cível como fiscal dos demais Poderes Públicos e defensor da legalidade e moralidade administrativa, inclusive com a titularidade do inquérito civil e da ação civil pública.
Dessa forma, a Constituição Federal enumera exemplificadamente as importantíssimas funções ministeriais.
Como dito acima, o rol constitucional é exemplificativo, possibilitando ao Ministério Público exercer funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade constitucional, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas. A própria Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n° 8.625/93) em seu art. 25 estabelece outras funções ministeriais de grande relevância.
Outras funções podem ser previstas em nível estadual, seja pelas Constituições Estaduais, seja pelas diversas leis complementares dos Estados-membros, desde que adequadas à finalidade constitucional do Ministério Público.
Importante ressaltar a total impossibilidade de legislação municipal estabelecer atribuições ao membro do Ministério Público em atuação no Município, inclusive no que disser respeito à participação obrigatória em Conselhos Municipais, conforme já decidiu o STF1, uma vez que somente leis federais e estaduais poderão estabelecer essas atribuições, sempre, repita-se, compatíveis com sua finalidade constitucional.
A forma e o modo de atuação do Promotor de Justiça, assim como dos Magistrados, são determinados pela norma superior, constitucional, bem assim pela lei federal e estadual, mas nunca pela municipal. As atribuições dos Promotores de Justiça estão definidas nas já referidas normas legais, sendo despiciendo a fixação de outras tarefas, principalmente aquelas que acabam atrelando o Promotor ao Gabinete do Prefeito, autoridade política do Município.
O Ministério Público não pode ficar atrelado a interesses ou injunções políticas locais, quando tendentes a tolher a atividade natural do Promotor. Deve, ao contrário, exercer suas atribuições legais e, muitas vezes, tomar iniciativa de ações opostas a determinados interesses.
Não se trata de discutir “autoridade”, mas sim de verificar a quem cabe a iniciativa de imposição de tarefas funcionais aos membros do Ministério Público. É certo que muitas vezes leis municipais buscam ampliar a área de ação e de abrangência na defesa comunitária ao Ministério Público local, mas isto é perfeitamente desnecessário, na medida em que nosso ordenamento jurídico praticamente esgota o modo de agir e a atuação funcional do Ministério Público nos interesses comunitários. Pode-se entender, assim, que, se aquele agente não tem exercido a contento a sua atividade comunitário, que é funcional, o caso não é de legislação municipal, mas disciplinar, neste caso, a cargo do comandante maior da instituição.

4. Posicionamento Constitucional do Ministério Público


O posicionamento constitucional do Ministério Público é uma questão que tem provocado bastante discussão na doutrina, sendo objeto de apurada análise, não só pelas constantes alterações no texto constitucional, mas também pela transformação evolutiva jurídico-social que sofreu a instituição, culminando com o moderno texto de 1988.

Neste âmbito de discussão, questão controversa é saber se as funções do Ministério Público se prendem ao Poder Legislativo (como fiscal da lei), se ao Judiciário (pois normalmente atua junto dele – opção da Constituição de 1967), se ao Executivo (pois sua tarefa é administrativa – opção da Constituição de 19690, ou se em título ou capítulo à parte (como na CF de 1934, de 1946 e na de 1988).


Ilusao de optica, by Rob Gonsalves.

Como é sabido, a soberania é una, pois existe apenas divisão das funções de fazer a norma (pelos Poderes Legislativos e Executivo) e de aplicar a lei (não contenciosamente, pelo Poder Executivo, ou contenciosamente, pelo Poder Judiciário). Em tese, nada impediria estivesse o Ministério Público dentro de qualquer dos ramos do Poder ou fosse erigido a um quarto Poder, fugindo, assim, da divisão clássica dos poderes.

Optou o constituinte de 1988 por conferir elevado status constitucional ao Ministério Público, quase o erigindo a um quarto Poder, ao dar-lhe garantias especiais e ao desvinculá-lo dos Capítulos do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Judiciário.

A seção dedicada ao Ministério Público insere-se, na Constituição de 1988, ao final do Título IV – Da organização dos Poderes, no Capítulo III – Das funções Essenciais à Justiça. A colocação tópica e o conteúdo normativo da Seção revelam a renúncia, por parte do constituinte de definir explicitamente a posição do Ministério Público entre os Poderes do Estado.

No dizer do Ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, com a qual modestamente comungamos, a colocação constitucional do Ministério Público é secundária, de interesse quase meramente teórico.

Em memorável julgado, assim se manifestou o eminente Ministro:

A razão subjacente à crítica contemporânea da integração do Ministério Público no Poder Executivo está, na verdade, na postulação da independência política e funcional do Ministério Público, pressuposto da objetividade e da imparcialidade de sua atuação nas suas funções sintetizadas na proteção da ordem jurídica. Dizia uma das inteligências mais lúcida da magistratura brasileira dos últimos tempos, o Ministro Rodrigues Alckmim, e, ao meu ver, com razão, a questão da colocação constitucional do Ministério Público entre os Poderes é uma questão de somenos, pois o verdadeiro problema é sua independência. O mal é que partimos de um preconceito de unipessoalidade e verticalidade hierárquica do Poder Executivo, que o Estado Moderno não conhece mais e que está desmentido pelos fatos, de que o direito comparada dá exemplos significativos. Garantida efetivamente a sua independência a colocação constitucional do Ministério Público é secundária, de interesse quase meramente teórico’’1

Assim se conclui, que o Ministério Público desvinculado do seu compromisso original com a defesa judicial do Erário e a defesa dos atos governamentais aos laços de confiança do Executivo, está agora cercado de contraforte de independência e autonomia que o credenciam ao efetivo desempenho de uma magistratura ativa de defesa impessoal da ordem jurídica democrática, dos direitos coletivos e dos direitos da cidadania.

A observância da autonomia e independência do Ministério Público tem sido a tendência internacional, respeitadas, evidentemente, as diferentes características de cada ordenamento jurídico. A constituição espanhola optou pela nota de juridicidade, democratização e jurisdicionalização do Ministério Público. Igualmente os membros do Ministério Público português são magistrados com garantias de autonomia e independência constitucionais, o que os coloca numa posição de independência equiparável à dos juízes, sujeitando-se somente à Constituição e às leis, pois suas relevantíssimas funções vão desde o exercício da ação penal até a defesa dos interesses difusos e da constitucionalidade e legalidade.

Ainda dentro da análise do posicionamento constitucional do Ministério Público é de bom alvitre fazer uma rápida abordagem sobre a natureza jurídica de sua atuação.
Analisando detidamente as principais funções institucionais, se percebe claramente que todas elas têm natureza administrativa: incumbências como promover a ação pública ou opinar como custos legis não são atividades jurisdicionais (atuar junto ao Judiciário não significa prestar jurisdição) nem legislativas (fiscalizar ou promover a observância das leis não se confunde com a atividade de sua elaboração).

O Ministério Público, pela natureza de suas funções, exerce atividade administrativa, até pelo critério residual, pois promover a execução das leis não é atividade legislativa nem jurisdicional. Passa a ser questão de conveniência que encontre posição constitucional distinta, para desvinculá-lo de uma dependência excessiva, especialmente do Poder Executivo.

Entretanto, como dito acima, mais importante que a posição neste ou naquele capítulo constitucional, são os instrumentos, garantias e impedimentos efetivamente conferidos à instituição e a seus membros, para que bem desempenhe suas funções, com liberdade e independência. Assim, a independência do Ministério Público não decorrerá basicamente de colocá-lo neste ou naquele título ou capítulo na Constituição, nem de denominá-lo Poder de Estado; antes dependerá das garantias e instrumentos de atuação conferidos à instituição e aos seus membros, e, naturalmente, dos homens que a integrem.


5. Princípios Institucionais do Ministério Público e Garantias de Seus Membros


O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição Federal, art. 1o da Lei n° 8.625/9, art. 1o da Lei Complementar Federal n° 75/93).

Para entender melhor o relevo constitucional a que foi alçado o Ministério Público na Constituição Federal de 1988, voltemos um pouco na história, notadamente nos instantes que antecederam sua promulgação.

Em pleno processo de democratização, após longo período de exceção, houve uma grande efervescência dos movimentos sociais organizados. Esses movimentos transformaram o Congresso Constituinte, instalado em 1987, em caixa de ressonância de suas demandas, traduzindo-as em normas constitucionais.

Assim é que a Constituição, dita cidadã, definiu a República brasileira como um Estado Democrático de Direito, fundamentado nos seguintes princípios:
  • soberania popular exercida por meio de representantes eleitos ou diretamente pela sociedade;
  • cidadania;
  • dignidade da pessoa;
  • valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
  • pluralismo político (art. 1o, incisos I a V);
  • subordinação da atividade econômica aos ditames da justiça social.
E com os seguintes objetivos:
  • construção de uma sociedade livre, justa e solidária;
  • garantia do desenvolvimento nacional;
  • erradicação da pobreza e da marginalização;
  • redução das desigualdades sociais e regionais;
  • promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3o, incisos I a IV).
Além de estatuir normas de organização do Estado, a Constituição de 1988 ampliou e elevou ao nível constitucional, não somente os direitos que consubstanciam a cidadania civil e política, tradicionalmente objeto das cartas constitucionais, mas também os direitos que consubstanciam a cidadania social.

Ao projetar uma democracia econômica e social, a Constituição:
  • estabelece garantias e declara direitos individuais, coletivos, sociais e políticos (art. 5o a 17);
  • define uma nova forma de organização política do Estado, descentralizando e criando novos espaços e meios de participação direta da sociedade na definição das políticas públicas e na elaboração de novos direitos (art. 14, incisos I a III; art. 29, incisos X e XI; art. 204, incisos I e II);
  • fornece instrumentos para a concretização dos direitos declarados e para a construção da sociedade democrática projetada (v.g., a ampliação do objeto da ação popular - art. 5o, inciso LXXIII - e a previsão em nível constitucional da ação civil pública para a tutela de interesses coletivos e difusos - art. 129, inciso III e seu parágrafo 1 °).
Com este novo desenho constitucional, não foi difícil ao constituinte reconhecer no Ministério Público um dos canais que a sociedade poderia dispor para a consecução do objetivo estratégico da República brasileira, qual seja, a construção de uma democracia econômica e social.

A trajetória traçada historicamente pela Instituição habilitou-a à representação dos interesses sociais e dos valores democráticos. Nessa perspectiva, a Constituição de 1988 consolidou o novo perfil político-institucional do Ministério Público, definindo o papel essencial que deve desempenhar numa sociedade complexa, na defesa do regime democrático, da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127, caput).


Para tanto, necessário se fez instrumentalizar a Instituição estabelecendo princípios basilares, bem como dotando seus membros de garantias necessárias e indispensáveis para o fiel cumprimento de seu papel constitucional, que passaremos a delinear.

5.1 Princípios


São princípios institucionais do Ministério Público, previstos na Carta Magna, a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

5.1.1 Unidade


A unidade significa que os membros do Ministério Público integram um só órgão sob a direção única de um só Procurador-geral, esclarecendo que só existe unidade dentro de cada Ministério Público, inexistindo entre o Ministério Público de um Estado e outro, bem como entre o Ministério Público Federal e o dos Estados, e ainda entre aquele e os diversos ramos do Ministério Público da União.




5.1.2 Indivisibilidade


Por este princípio resta garantido que os membros do Ministério Público não se vinculam aos processos nos quais atuam, podendo ser substituídos uns pelos outros de acordo com as normas legais. Importante ressaltar que a indivisibilidade resulta em verdadeiro corolário do princípio da unidade, pois o Ministério Público não se pode subdividir em vários outros Ministérios públicos autônomos e desvinculados uns dos outros.

Lecionando sobre o tema o Professor José Albuquerque Rocha assegura o seguinte:

"A indivisibilidade é uma característica de todas as organizações formais. Seus membros, nessa qualidade, são indissociáveis da organização. É o que ocorre com o Ministério Público relativamente a sua indivisibilidade, a significar que seus membros, enquanto tais, exprimem a vontade da instituição, e não sua vontade individual.”1

5.1.3 Princípio da independência ou autonomia funcional


O membro da instituição é independente no exercício de suas funções, não ficando sujeito às ordens de quem quer que seja, somente devendo prestar contas de seus atos à Constituição, às leis e à sua consciência.

Nem seus superiores hierárquicos podem ditar-lhe ordens no sentido de agir desta ou daquela maneira dentro de um processo. Os órgãos de administração superior do Ministério Público podem editar recomendações sobre a atuação funcional para todos os integrantes da Instituição, mas sempre sem caráter normativo.

Com esteio no princípio constitucional em baila, podemos afirmar que só se concebe no Ministério Público uma hierarquia no sentido administrativo, pela chefia do Procurador-Geral da instituição, nunca de índole funcional.

5.2 Garantias


As garantias e prerrogativas constitucionais dos membros do Ministério Público foram-lhes conferidas pelo legislador constituinte objetivando o pleno e independente exercício de suas funções, visando à defesa do Estado democrático de direito e dos direitos fundamentais.

Hely Lopes Meirelles discorrendo sobre as prerrogativas afirma o seguinte:

são atribuições do órgão ou do agente público, inerentes ao cargo ou a função que desempenha na estrutura do Governo, na organização administrativa ou na carreira a que pertence. São privilégios funcionais, normalmente conferidos aos agentes políticos ou mesmo aos altos funcionários, para a correta execução de suas atribuições legais. As prerrogativas funcionais erigem-se em direito subjetivo de seu titular, passível de proteção por via judicial, quando negadas ou desrespeitadas por qualquer outra autoridade.”2

5.2.1 Vitaliciedade


Por esta garantia o membro do Ministério Público somente poderá perder seu cargo por decisão judicial transitada em julgado. A vitaliciedade somente é adquirida após o chamado estágio probatório, que pela norma atual se dá após 02 (dois) anos de efetivo exercício.
O art. 38 da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público estabelece os casos passíveis de perda do cargo, isto, como dito, após decisão judicial transitada em julgado, em ação civil proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o Tribunal de Justiça local, após autorização do Colégio de Procuradores.

5.2.2 Inamovibilidade


Uma vez titular do respectivo cargo, o membro do Ministério Público somente poderá ser removido ou promovido por iniciativa própria, nunca ex officio de qualquer outra autoridade, salvo em uma única exceção constitucional, por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, por voto de dois terços de seus membros, assegurada ampla defesa (art. 128, I, b, da CF).

5.2.3 Irredutibilidade de subsídio


O subsídio do membro do Ministério Público não poderá ser reduzido, para pressioná-lo a exercer suas atribuições. Por referida garantia exige-se reajustes periódicos e automáticos de acordo com a desvalorização da moeda ou aumento do custo de vida.

6. O Ministério Público e sua Destinação Constitucional


Podemos afirmar que foram plenas de significação as conquistas institucionais obtidas pelo Ministério Público ao longo do processo constituinte de que resultou a promulgação da Constituição Federal de 1988. Com a reconstrução da ordem constitucional, emergiu o Ministério Público sob o signo da legitimidade democrática. Ampliaram-se-lhe as atribuições; dilatou-se-lhe a competência; reformulou-se-lhe a fisionomia institucional; conferiram-se-lhe os meios necessários à consecução da própria sociedade.

Posto que o Ministério Público não constitui órgão anciliar do Governo, instituiu o legislador constituinte um sistema de garantias destinado a proteger o membro da Instituição – o Promotor de Justiça - cuja atuação independente configura a confiança de respeito aos direitos, individuais e coletivos, e a certeza da submissão dos Poderes à lei.

É indisputável que o Ministério Público ostenta, em face do ordenamento constitucional vigente, destacada posição na estrutura do Poder. A independência institucional, que constitui uma de suas mais expressivas prerrogativas, garante-lhe o livre desempenho, em toda a sua plenitude, das atribuições que lhe foram conferidas.

O eminente Hely Lopes Meirelles1, discorrendo sobre aspectos institucionais referentes ao Ministério Público, acentua a importância de ser ele concebido como órgão funcionalmente independente, verbis:

Fixada a posição do Ministério Público na estrutura constitucional da nossa Federação, sobressai, desde logo, a sua independência funcional, pois que não está hierarquizado a qualquer outro órgão ou Poder, e seus membros são agentes políticos desvinculados do Estatuto dos Funcionários Públicos
..Ora, no que concerne ao desempenho da função ministerial, pelo órgão (MP) e seus agentes (Promotores, Procuradores), há independência de atuação e não apenas “autonomia funcional’’. Os membros do Ministério Público quando desempenham as suas atribuições institucionais não estão sujeitos a qualquer subordinação hierárquica ou supervisão orgânica do Estado a que pertencem.No mais, os membros do Ministério Público atuam com absoluta liberdade funcional, só submissos à sua consciência e aos seus deveres profissionais, pautados pela Constituição e pelas leis regedoras da Instituição. Nessa liberdade de atuação no seu ofício, é que se expressa a independência funcional (…).” (grifo nosso)

Cumpre, por isso mesmo, neste expressivo momento histórico em que o Ministério Público se situa entre o seu passado e o se futuro, refletir sobre a natureza da missão institucional que a ele incumbe desempenhar no seio de uma sociedade que, agora, emerge para a experiência concreta de uma vida democrática.

A ruptura do Ministério Público com os conceitos tradicionais do passado - segundo os quais seria o fiscal da lei, de qualquer lei, por mais injusta ou arbitrária que fosse - impõe-se, hoje, como decorrência de novas exigências ético-políticas a que essa Instituição deve, por um imperativo democrático, submeter-se e, também, em face da reformulação a que foi submetida no plano constitucional.




A Carta Política de 1988 proclama em seu artigo 127, caput, que: O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis."

Esse novo perfil institucional traduz, de modo expressivo, um dos aspectos mais importante da destinação constitucional do Ministério Público, agora investido, por efeito de soberana deliberação da Assembléia Nacional Constituinte, da inderrogável atribuição de velar pela intangibilidade e integridade da ordem democrática.

Assim, o Ministério Público não deverá mais só considerar, no desempenho de suas relevantes funções, o aspecto formal ou exterior do direito positivo. Mais importante, agora, torna-se o próprio conteúdo da lei, cujos elementos intrínsecos não podem divorciar-se dos fatos sociais e do quadro histórico em que a norma jurídica se formou.

O Estado democrático, gerador de uma ordem jurídica fundada no consentimento dos governados — que se exterioriza pela livre e permanente penetração da sua vontade no processo decisório nacional - deve ser entendido como aquele cujas bases repousam na soberania popular, na divisão funcional do Poder, no respeito e na garantia das liberdades públicas, e no pluralismo de expressão e de organização política.

A legalidade assim posta, veiculadora das justas aspirações e dos objetivos maiores perseguido pelo corpo social, qualifica-se como democrática, passível, em conseqncia, da tutela institucional do Ministério Público.

Este, pois, deixa de ser um servo incondicional de qualquer legalidade, para converter-se num órgão que indague das origens da norma e lhe perquira o conteúdo, valendo-se, para tanto, de critérios axiológicos que lhe permitam aferir dos elementos que qualificam a regra jurídica como essencialmente democrática. Não mais o mero e insuficiente controle formal de legalidade. Pretende-se, agora, investir o Ministério Público de um poder de verificação e de tutela sobre a legitimidade ética e política da própria norma de direito.

A obra do legislador, no que pertine ao seu conteúdo, está necessariamente condicionada pelas relações sociais, pelas normas de cultura, pelas concepções que vigoram na formação social em que atua e — o que se revela essencial — deve estar legitimada pelo consenso dos governados.

Sem a observância desses condicionamentos, o direito posto pelo Estado refletirá, por suas intrínsecas distorções, um ato de criação arbitrária, distanciado do bem comum, cuja consecução traduz o próprio fundamento teleológico da organização estatal.

A nova disciplina constitucional do Ministério Público redefiniu o sentido e o caráter de sua ação institucional, para que nele se passe, agora, a vislumbrar o instrumento de preservação de um ordenamento democrático.

A essencialidade dessa posição político-jurídica do Ministério Público assume tamanho relevo que ele, deixando de ser o fiscal de qualquer lei, converte-se no guardião da ordem jurídica cujos fundamentos repousam na vontade soberana do povo.

O Ministério Público deixa, pois, de fiscalizar a lei pela lei, num inútil exercício de mero legalismo. Requer-se dele, agora, que avalie, criticamente, o conteúdo da norma jurídica, aferindo-lhe as virtudes intrínsecas, para, assim, neutralizar o absolutismo formal de regras legais, muitas vezes divorciadas dos valores, idéias e concepções vigentes na comunidade, em dado momento histórico-cultural.

Não mais se pode, assim, exigir do Ministério Público um comportamento institucional que traduza, em face da ordem jurídica estabelecida, uma postura de neutralidade axiológica.

O tratamento dispensado ao Ministério Público pela nova Constituição conferiu-lhe, no plano da organização estatal uma posição de inegável eminência, na medida em que se lhe conferiram funções institucionais de magnitude irrecusável, dentre as quais avulta a de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados neste Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia" (v. CF/88, art. 129, inciso II).

O Ministério Público em face dessa regra, tornou-se, por destinação constitucional, o defensor do povo.

Numa relação dilemática, em que conflitem os interesses do governo e os do povo, não há, para o Ministério Público, alternativa politicamente válida e moralmente digna, senão a da intransigente defesa dos valores pertencentes à Nação, mesmo que sob o injusto assédio dos curadores - de quaisquer curadores - do regime.

A tutela de um direito abstrato, que permite a destruição das liberdades públicas e autoriza o arbítrio, pela hipertrofia da coerção estatal, subjugando e aniquilando o indivíduo, não pode constituir missão institucional do Ministério Público.

O novo perfil do Ministério Público representa, portanto, resposta significativa aos anseios e postulações dos que, perseguidos pelo arbítrio e oprimidos pela onipotência do Estado, a ele recorrem, na justa expectativa de verem restaurados os seus direitos.

A responsabilidade social do Ministério Público torna-se, por isso mesmo, imensa; todos os membros da Instituição são, agora, depositários da fé e da confiança do povo que, com eles, celebrou o compromisso, grave e inderrogável, da liberdade e do respeito aos seus direitos e às suas garantias.

Combatendo o arbítrio, insurgindo-se contra os que violam, com prepotência, as franquias individuais, transformando o protesto de vítimas indefesas em ação realizadora da Justiça, repudiando as leis injustas, porque desvinculadas dos anseios e do consentimento dos governados, em assim agindo, o Ministério Público terá dado o testemunho que a Nação dele espera.

7. O Princípio do Promotor Natural


Em simplórias palavras podemos afirmar que o princípio do promotor natural consiste na existência de um órgão do Ministério Público anteriormente previsto pela lei para oficiar nos casos que sejam afetos à instituição.

O postulado do promotor natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei.

A existência do mencionado princípio passou a ser objeto de estudo pela doutrina praticamente após a Carta de 1969, que implicitamente o contemplava.

Hugo Nigro Mazzili, Promotor de Justiça de São Paulo, já em 1976 sustentava de forma precursora, com grande controvérsia na época, o princípio do promotor natural, quando afirmava em sua tese “O Ministério Público no processo penal”:

"A garantia da inamovibilidade do membro do Ministério Público liga-se ao exercício das funções do promotor, e não à sua presença física na Promotoria; assim, o poder de designação do Procurador-geral não pode sobrepor-se às garantias do órgão do Ministério Público nem pode sobrepor-se à discriminação de atribuições previstas em lei".1

E continua o renomado promotor:

Nos crimes de ação pública, o primeiro direito do acusado, antes de ser julgado por um órgão independente do Estado, consiste em ser acusado por um órgão estatal dotado de igual independência, escolhido por critérios legais abstratos, fixados anteriormente à prática do crime. Para esse fim, devem, pois, ser abominados não só o procedimento de ofício e a acusação privada, como enfim o acusador público de encomenda, escolhido pelos governantes ou pelo próprio procurador-geral de Justiça, o que não raro dá azo a perseguições ou a acobertamentos por razões políticas ou de qualquer outra natureza”2. (grifo nosso)

Outro precursor do princípio em comento foi o Ministro Antônio Néder, do STF, que julgando o HC 55.705, em 1977, sustentou o seguinte:

...ora, se é proibido o tribunal de exceção, se é vedado instituir o juízo de exceção, impedido é conceber-se o acusador de exceção, pois não se compreende que nossa Constituição proíba o juiz de exceção e admita o acusador de exceção, isto é, conceda e ao mesmo tempo subtraia uma garantia".

A jurisprudência, após alguns vacilos iniciais do Supremo Tribunal Federal, quedou-se por reconhecer a existência do postulado do promotor natural no sistema constitucional brasileiro.

Para alguns doutrinadores a matriz constitucional desse princípio assenta-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição, como é o caso de Alexandre de Moraes, bem como do Ministro do Supremo Tribuna! Federal, Celso de Mello. Outros vão mais além, como é o caso de Hugo Mazzilli, de Marcos Aurélio, Ministro do STF e do Procurador do Trabalho, Francisco Gérson Marques de Lima3, que sustentam que o princípio do promotor natural tem sua base constitucional ancorada em quatro fundamentos básicos: o devido processo legal (art. 5o, Llll, da CF), o direito do cidadão de ser processado pela autoridade competente (art. 5o, LIV), a independência funcional (art. 127, § 1o) e a inamovibilidade (art. 128, § 5o, I, "a”).

Estamos certos que, inegavelmente, os dois primeiros fundamentos acima citados (o devido processo legal e o direito do cidadão de ser processado pela autoridade competente) também servem de alicerce para assegurar a existência constitucional do princípio do promotor natural.

7.1 O Devido Processo Legal (art. 5o, Llll, da CF) e o Direito de Ser Processado pela Autoridade Competente (art. 5o, LIV, da CF)


A existência deste último dispositivo legal revela alcance que excede a simples previsão do juiz natural. A uma, porque, ao contemplar garantia constitucional, o faz com extravasamento do campo alusivo ao ofício judicante. Junge a prolação da sentença ao princípio do juiz natural, é certo, mas também revela a obrigatoriedade de observar-se o balizamento processual que outro não é senão o previsto na legislação em vigor. A duas, porquanto, estivesse o preceito limitado à inserção do princípio do juiz natural como garantia constitucional, forçoso seria dizer da redundância, isto mediante revelação de mandamentos com idêntico sentido, embora em incisos diversos. É que o de número XXXVII, do mesmo artigo, prevê, este sim, que não haverá juízo ou tribunal de exceção. Logo, impossível é deixar de reconhecer no inciso Llll sentido que extrapola o campo pertinente à competência do juízo. A alusão à impossibilidade de alguém vir a ser processado senão pela autoridade competente diz respeito às normas processuais e estas, iniludivelmente, abarcam os pressupostos de desenvolvimento válido do processo e dentre estes exsurge a legitimidade ad processum e que, no caso, quanto ao Estado, é revelada pela atribuição conferida ao Promotor de Justiça.

Efetivamente, não se concebe a garantia da inexistência do Juízo ou Tribunal de exceção com a possibilidade concreta da existência da acusação ad hoc, especialmente designada, onde é possível antever desempenho inconsequente ou dirigida, às vezes com sacrifício da função institucional do Ministério Público, que é a defesa intransigente da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Por outro lado, a garantia do devido processo legal não se realizará plenamente sem a certeza de que não haverá acusador de exceção, pois qualquer procedimento só será considerado legítimo e assegurada a atuação livre e independente de órgão ou autoridade com atribuição funcional previamente fixada em lei.
Neste ponto, é válido trazer à colação mais uma vez o magistério de Hugo Nigro Mazzilli, verbis:

"Não há dúvida de que, normalmente, quando a Constituição menciona “processar e julgar, está querendo referir-se à tarefa jurisdicional (cf. arts. 52, le II, 102,1, 105,1, 108,1, e 109).Entretanto, partindo-se da exclusividade da promoção da ação penal, agora conferida ao Ministério Público (art. 129, I), bem como considerando-se a inamovibilidade comum de que gozam juízes e promotores (arts. 95, II e art. 128, § 5o, I, b), bem como o procedimento da independência funcional que não é uma garantia só para o órgão, e sim para a sociedade, final destinatária de sua atuação, vemos que o princípio do promotor natural hoje faz parte do devido processo legal (CF, art. 5o, UH e LIV). Assim, sob esse prisma, a norma do art. 5o, LIII, pode também ser considerada, a um só tempo, o princípio do juiz e o do promotor com competência ou atribuição legal para oficiarem no caso.É o mesmo princípio do promotor natural, mas agora sob uma ótica diversa. Realmente, este é o primeiro direito do acusado: não apenas o de ser julgado por um órgão independente do Estado, mas até mesmo antes disso, o de receber a acusação independente, de um órgão do Estado escolhido previamente segundo critérios e atribuições legais, abolidos não só o procedimento de ofício e a acusação privada, como enfim e principalmente eliminada a figura do próprio acusador público de encomenda, escolhido pelo Procurador-Geral de Justiça”.1

7.2 A Independência Funcional (art. 127, § 1o) e a Inamovibilidade (art. 128, § 5o, I, “a”)


O princípio da independência funcional do Ministério Público, assegurado constitucionalmente (art. 127, § 1o, da Carta Magna), implica na consideração de que foi instituída a figura do Promotor Natural.

Efetivamente, se o chefe do Ministério Público, ou órgão de sua estrutura, colegiado ou singular, não pode impor ao Promotor sua linha de orientação, dizendo a ele como deve agir em tal ou qual hipótese, porque estaria violando a sua autonomia funcional, não pode também afastá-lo do ofício para onde foi legalmente designado, ou restringir a sua atuação em face de determinado caso, porque isto significa forma eficaz de contornar, na prática, o princípio do promotor natural, não devendo ser esquecido que tal ocorre, sempre, quando há divergência ou possibilidade dela, entre o posicionamento do Promotor de Justiça, frente a uma situação concreta, e o do Procurador-Geral.

O fato de existir um chefe não significa que exista qualquer tipo de subordinação funcional, sendo o Promotor ou qualquer membro inteiramente livre para exercer a sua atividade, oficiando autônomo e fundamentadamente, com obediência exclusiva à lei e a sua consciência.

Daí se extrai o princípio do Promotor Natural que não é apenas regalia funcional individual do órgão ou membro da instituição, que deve atuar livremente nos processos afetos ao limite de suas atribuições, conforme determinação legal, mas principalmente uma garantia de todo cidadão ou entidade jurídica no sentido de que está afastada a possibilidade da existência do Promotor de Exceção, havendo sempre, conforme determinação legal preexistente, um órgão específico do Ministério Público atuando de forma independente e com legitimidade processual, sendo ao mesmo tempo uma garantia individual e social.




O Professor Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, ilustre Promotor de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, traz importante contribuição doutrinária sobre o tema, que vale a pena ser transcrita, verbis:

A teoria do promotor natural ou legal, como anteriormente afirmado, decorre do princípio da independência, que é imanente à própria instituição. Ela resulta, de um lado, da garantia de toda e qualquer pessoa física, jurídica ou formal que figure em determinado processo que reclame a intervenção do Ministério Público, em ter um órgão específico do parquet atuando livremente com atribuição predeterminada em lei, e, portanto, o direito subjetivo do cidadão ao Promotor (aqui no sentido lato), legalmente legitimado para o processo. Por outro lado, ela se constitui também como garantia constitucional do princípio da independência funcional, compreendendo o direito do Promotor de oficiar nos processos afetos ao âmbito de suas atribuições.Este princípio, na realidade, é verdadeira garantia constitucional, menos dos membros do parquet e mais da própria sociedade, do próprio cidadão, que tem assegurado, nos diversos processos em que o Ministério Público atua, que nenhuma autoridade ou poder poderá escolher Promotor ou Procurador específico para determinada causa, bem como que o pronunciamento deste membro do MP dar-se-á livremente, sem qualquer tipo de interferência de terceiro.”1

E continua o eminente Professor:

Esta garantia social e individual permite ao Ministério Público cumprir, livre de pressões e influências, a sua missão constitucional de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Qual a garantia que se poderia dar a alguém, à própria sociedade, de que a lei seria cumprida na hipótese de ficar ao arbítrio de determinada autoridade a escolha do membro do Ministério Público para examinar da conveniência ou não de promover ação penal em face de alta autoridade pública, para promover ou não ação cível contra poderosa fábrica que polui o ar de determinada região pobre; para promover ação visando a apurar abuso e omissão de autoridade; para coibir abuso de autoridade ou poder econômico; para intervir, em geral, nos processos nos quais está em jogo direito social ou individual indisponível? Certamente nenhuma.O princípio do promotor natural pressupõe que cada órgão da instituição tenha, de um lado, as suas atribuições fixadas em lei e, de outro, que o agente que ocupa legalmente o cargo correspondente ao seu órgão de atuação, seja aquele que irá oficiar no processo correspondente, salvo as exceções previstas em lei, em qualquer hipótese, o exercício das funções por pessoas estranhas aos quadros do parquet”.2

A exigência de atuação independente do membro do Ministério Público, pautada nos justos valores que devem informar a elaboração do conteúdo normativo da lei, reside na gênese da formulação do princípio do promotor natural, a que repugnam interferências ilegítimas da Chefia da Instituição, que rompem, mediante designações casuísticas e arbitrárias, a regular ordem de distribuição dos processos e encargos funcionais.

É preciso velar pela dignidade institucional do Ministério Público e impedir que Procuradores Gerais, despojados da consciência que lhes impõe o momento histórico que vive a Instituição, venham, por razões menores ou pela desprezível vontade de agir servilmente, a degradá-la, convertendo-a, desse modo, em inaceitável instrumento de pretensões contestáveis.

Dessa expressiva garantia jurídica, em que se traduz o princípio do promotor natural, teve percepção, em sua época, com seu agudo senso de justiça e de independência, o eminente Roberto Lyra3, cuja advertência, extraída da descaracterização do Ministério Público no plano da organização estatal, cumpre não ser esquecida em momento algum:

"Pela primeira vez, na história do Ministério Público, procuradores-gerais seriam substituídos e, sobretudo, escolhidos à mercê de réus. O escândalo dessa dissolução moral seria, além de tudo, contraproducente, pois a Magistratura ficaria suscetibilizada no mais santo de suas cóleras. Exercendo a Procuradoria-Geral, na última fase de minha carreira, impedi que o Ministério da Guerra escolhesse o promotor público (sempre o mesmo) em processos relativos à liberdade de imprensa."

Jaques de Camargo Penteado, notável membro do Ministério Público paulista, ao desenvolver a noção conceituai de Promotor Natural e insistir no alcance desse princípio (O princípio do Promotor Natural, in Justitia, vol. 129/114-124) — "... os membros do Parquet terão cargos específicos, proibidas as simples e discricionárias designações, afastando-se Promotor de Justiça ad hoc..." -, assim se refere, na perspectiva do tema, ao órgão de acusação pública:

Estruturar-se-á em lei consentânea com o princípio outorgado. Está claro que o mesmo texto que assegura ampla defesa contém o princípio da acusação constitucionalmente adequada; isto é, por órgão próprio, criado pela Constituição, estável, independente, designado para o cargo e não para o encargo determinado, para as funções e não para o ato específico.Quando a constituição Federal assegura ampla defesa e cria o Ministério Público há que se extrair do sistema integral a conclusão de que o Parquet deve ser o primeiro interessado na realização concreta e antecipada daquele princípio e, portanto, direta e substancialmente voltada para acusação advinda da naturalidade de seu organismo e da normalidade decorrente da distribuição legal dos serviços.Governo algum pode interferir no Ministério Público para obter acusação contra inimigo político, sob pena de violação dos princípios da igualdade e da ampla defesa. Não basta o controle jurisdicional posterior, eis que a todo indivíduo deve ser assegurado o direito de jamais ver seu nome inserido numa denúncia sem supedâneo suficiente. E o contrário deve igualmente ser analisado. Governo algum pode interferir no Parquet para obter denúncia que jamais chegará a bom termo ou arquivamento que deixará de levar à condenação justamente aquele que feriu a ordem pública.”

O reconhecimento deste princípio, que se revela imanente à disciplina constitucional do Ministério Público, objetiva conferir efetividade a dois postulados fundamentais: um, o da independência funcional, e outro, o da inamovibilidade dos membros da Instituição.
Tais postulados vinculam e limitam, por seu conteúdo mesmo, o poder do Procurador-Geral, que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável.

O princípio da independência funcional reveste-se de caráter tutelar. É de ordem institucional (CF, art. 127, § 1o) e, nesse plano, acentua a posição autônoma do Ministério Público em face dos Poderes da República, com os quais não mantém vínculo qualquer de subordinação hierárquico-administrativa.
O magistério de José Frederico Marques4 sobre esse tema é esclarecedor:

"O Ministério Público é funcionalmente independente, porquanto, apesar de órgão da administração pública, não é ele instrumento à mercê do governo e do Poder Executivo. (...). Independente é, também, o Ministério Público, da magistratura judiciária, que, sobre ele, nenhum poder disciplinar exerce. Entre o juiz e o promotor de justiça, existem relações de ordem processual tão somente. Não cabe ao magistrado judicial dar ordens ao Ministério Público, no plano disciplinar e da jurisdição censória (...)”.Essa independência funcional do Ministério Público foi expressamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, quando, ao julgar procedente representação de inconstitucionalidade que se lhe submetera, proclamou a ausência absoluta de subordinação administrativa do Ministério Público ao Poder Judiciário (RTJ 95/980, rel. Ministro Moreira Alves).

O princípio da inamovibilidade, por sua vez, revela-se fonte matricial da tese que acolhe o princípio do promotor natural. Atua como garantia de ordem subjetiva, tendo por destinatário precípuo o próprio membro da Instituição, que não poderá, ressalvada a hipótese de interesse público, ser compulsoriamente removido ou afastado do seu cargo. É amplo o alcance desse princípio, pois não só garante o Promotor ou Procurador no cargo de que é titular, mas assegura-lhe, também, a integridade das funções inerentes ao ofício que titulariza e desempenha, que não poderão ser atribuídas, seletivamente, a outros membros da Instituição, em razão de situações concretas e especiais.

A inamovibilidade, pois, enquanto garantia subjetiva de independência, concerne não só ao cargo, mas, especialmente, às respectivas funções, que não poderão dele ser destacadas pelo Procurador Geral e, por ato deste, deferidas a outro Promotor/Procurador. Atribuir legitimidade a esse procedimento do Chefe do Ministério Público equivaleria a justificar o descumprimento indireto da garantia da inamovibilidade e, como necessário efeito consequencial, dar causa, injustificável, ao virtual esvaziamento das funções inerentes ao cargo ocupado por membros do Ministério Público.

Não podem ser considerados, assim, ilimitados os poderes de avocação e de designação do Procurador Geral, inobstante tenha o Supremo Tribunal, em determinada ocasião, decidido, em função do princípio da unidade institucional, que “O Ministério Público é uno e pode, portanto, seu Chefe avocar qualquer processo ou designar promotor para que nele ofereça denúncia" (RT 553/428 - Rei. Ministro Moreira Alves).

Nessa perspectiva, tais poderes, embora derivados dos princípios da unidade e da indivisibilidade da Instituição, sofram, hoje, o condicionamento de outro princípio também constitucional — o da independência funcional — e encontram limite na garantia da inamovibilidade que, alçada ao plano da Constituição, assiste, agora, de modo amplo, aos membros do Ministério Público.

O exercício desses poderes pelo Procurador Geral só se justificará, pois, nos limites estritos da lei e com respeito absoluto às atribuições funcionais do membro do Ministério Público, as quais constituem objeto de precisa discriminação legal.

Deste modo podemos afirmar que o princípio do promotor natural só admite as exceções previstas em lei, tais como licença, remoção a pedido, férias, etc., não sendo possível o afastamento sem motivação legal, nem a avocação inconsequente.

Aqui é preciso novamente trazer a doutrina do Professor Paulo Cezar Pinheiro Carneiro5, obra citada, verbis:

Todo e qualquer ato do Procurador-Geral que contrarie tal princípio, ainda que editado com aparência de legalidade como designações, avocações, delegação e formação de grupos especiais, é absolutamente nulo; incapaz de produzir qualquer tipo de efeito e sujeito a medidas legais que visem ao restabelecimento da observância do princípio do promotor natural”.

A possibilidade da ação privada nos crimes de ação pública, no caso de inércia do acusador, não descaracteriza o princípio do promotor natural, seja porque ser exceção prevista em lei, seja porque o Promotor do caso não é afastado de suas funções, podendo inclusive aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, e intervir em todos os termos do processo, na forma do que dispões o art. 29 do Código de Processo Penal.

O mesmo é de ser dito em relação ao art. 28 do Código de Processo Penal, vez que se trata de outra exceção prevista em lei, onde o Procurador Geral ou o Promotor por ele designado passa a ser acusador legal, sendo certo ainda que não há, na hipótese, o afastamento do Promotor Titular e que tal decorre justamente da necessidade de conciliar o princípio da independência funcional com o resguardo dos interesses da sociedade.

Inderrogável pelo legislador ordinário e, com maior razão, pelas normas internas do Ministério Público, o princípio do promotor natural tem a finalidade de evitar a atuação dirigida do Parquet, o agir encomendado, seja para beneficiar, seja para prejudicar alguém. Num e noutro caso há ruptura da imparcialidade da atuação ministerial, a comprometer a seriedade da jurisdição (buscada oportunamente), que não pode ser escudo de perseguição pessoal nem de beneplácito das autoridades. O cidadão tem o direito ao processamento imparcial integral, desde a condução das investigações até a definitiva tutela jurisdicional.

Assim é que fica vedado aos Procuradores Gerais (da República, do Trabalho, de Justiça ou de qualquer outro ramo do Ministério Público) fazer designações ofensivas à imparcialidade da persecutio ou que tenham por objetivo afastar do feito o membro legalmente investido das atribuições de nele atuar. Sendo princípio da instituição ministerial a independência funcional, o convencimento do membro do Parquet não pode ser cerceado por autoridade que só administrativamente lhe é superior. Não pode haver, neste mesmo tirocínio, ingerências ou determinações do Procurador-Geral sobre o agir ou não-agir do membro da instituição nos feitos da alçada deste; não pode haver determinação de abertura de procedimento investigatório nem de trancamento de algum já instaurado.

Eventualmente, porém - pois não há o absoluto em Direito - podem ocorrer designações de juízes e membros do Ministério Público pelas autoridades competentes. Mas tais designações só são permitidas quando escudadas em critério legal prévio, genérico e imparcial. Urge a existência de norma abstrata que, anteriormente ao fato concreto, discipline procedimento das designações, numa atmosfera de razoabilidade e proporcionalidade. A propósito já decidiu o Supremo Tribunal Federal que “não ofende o princípio do juiz natural a designação de juízes substitutos para realização de esforço concentrado em diversas Varas com o objetivo de auxiliar os juízes titulares. Também não ofende o princípio do promotor natural atribuir aos Procuradores da República lotados no Estado a responsabilidade sobre as Procuradorias da República nos Municípios.”. (STF, 1a Turma, RE n° 255.639/SC, rei. Ministro limar Galvão, j. 13.02.2001, Informativo 217, 12­16.02.2001).

Com esse entendimento, a primeira turma do Supremo manteve acórdão do TRF da 4a Região que confirmara a condenação do recorrente pela prática do crime previsto no art. 95, “d”, da Lei n° 8.212/91- não recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos salários dos empregados em que se alegava que o regime de exceção a que submetida a 2a Vara Federal de Joinville/SC (Provimento 44/96 do TRF da 4a Região) ofenderia o princípio do juiz natural e que a atuação no processo de membros do Ministério Público Federal que exercia funções em outra circunscrição judiciária, sem designação específica para tanto, violaria o princípio do promotor natural.

Luiz Renato Topan, citado por Francisco Gérson Marques Lima (ob. cit. p. 184), faz ver que a restrição ao poder do Procurador Geral é de fácil entendimento se vislumbrarmos a inamovibilidade como direito do cidadão, pois este não teria garantia seja se o Procurador Geral pudesse mudar o promotor de sua comarca, designando outro para seu lugar, seja se aquele, dentro da mesma comarca, retirasse o promotor de suas funções através de mudança das atribuições dos diversos órgãos de execução. Enfim, a inamovibilidade não é só de comarca ou de Vara, mas também de processos ou procedimentos.

Antes do advento da Lei n” 8.625/93, decidiu o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, que a Constituição de 1988 havia recepcionado a Lei complementar nº 40/81. notadamente do art. 7º, inciso V, que conferia ao Procurador Geral amplo poder de substituição para, “mesmo no curso do processo, designar outro membro do Ministério Público para prosseguir na ação penal, dando-lhe orientação que for cabível no caso concreto”. Deste modo, entendia o Pretório que, para efeito de atuação do princípio do promotor natural, necessário se fazia a existência de lei específica. Eis a EMENTA do singular julgado:

HABEAS CORPUS”- MINISTÉRIO PÚBLICO – SUA DESTINAÇÃO CONSTITUCIONAL – PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS – A QUESTÃO DO PROMOTOR NATURAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 – ALEGADO EXCESSO NO EXERCÍCIO DO PODER DE DENUNCIAR - INOCORRÊNCIA - CONSTRANGIMENTO INJUSTO NÃO CARACTERIZADO - PEDIDO INDEFERIDO.

O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedaçao de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Publico, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei.

A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável.

Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO. Divergência, apenas quanto à aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural: necessidade da “interpositio legislatoris” para efeito de atuação do princípio (Ministro CELSO DE MELLO); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO).

Reconhecimento da possibilidade de instituição do Principio do Promotor Natural mediante lei (Ministro Sydney Sanches).

Posição de expressa rejeição à existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES." (HC n° 67.759-2-Rio de Janeiro - DJ 01.07.93).

Na oportunidade o Ministro Sepúlveda Pertence defendeu posição contrária, por entender que “a carga de eficácia de alguns novos princípios do perfil constitucional da instituição era suficiente a impedir, desde logo, a sobrevivência do poder solitário de substituição imotivada, antes outorgada ao Procurador-Geral’.

E arrematou o eminente Ministro:

"Impressionou-me sobretudo a convicção de que o poder de substituição afeta, particularmente, a plenitude da garantia da inamovibilidade dos membros do Ministério Público, cuja segurança fora confiada, na Lei Fundamental, à decisão da maioria qualificada de um colegiado da Instituição, de tal modo que se me afigurou sem sentido que o seu esvaziamento, mediante substituições casuísticas, pudesse continuar entregue ao arbítrio do seu chefe: por isso, sustentei, até que a lei o disciplinasse, submetendo-a a critérios determinados, a solução mais razoável seria o controle prévio ou o referendo, pelo colegiado competente, do exercício, pelo Procurador-Geral, do poder de substituição para casos específicos.”

Com a publicação do diploma legal acima citado (Lei n° 8.625/93), a Excelsa Corte passou a admitir a existência plena do postulado do promotor natural, bem como ficou restringido drasticamente o poder do Procurador Geral de substituição por outro, designado especialmente para atuar em caso determinado, do órgão do Ministério Público a quem deveria tocar o feito, se observados os critérios normais da distribuição.

Com efeito, a teor da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público - Lei n° 8.625/93, de 12.02.93 - salvo a hipóteses da concordância do Promotor de Justiça titular com a designação de outro para funcionar em caso determinado, de sua atribuição (art. 24) - só por "ato excepcional e fundamentado”, previamente submetido ao Conselho Superior, poderá o chefe da instituição designar membro do Ministério Público para exercer funções processuais afetas a outro.

7.3 Questões Controvertidas


Não obstante a unanimidade dos estudiosos de que o princípio do promotor natural é um primado constitucionalmente assegurado, como garantia do cidadão e da sociedade, existem pontos ainda polêmicos em torno do assunto.

Dito isto, é de bom alvitre abordar uma das questões ainda bastante controvertida pala doutrina. Fere o princípio do promotor natural a formação de grupos especiais de membros do Ministério Público para atuarem em determinadas investigações?

Paulo Cezar Pinheiro Carneiro e Hugo Mazzilli, ilustres membros do Ministério Público, entendem que é nulo, por ferir o princípio do promotor natural, ato de Procurador Geral designando e formando grupos especiais. Com a devida venia ousamos discordar dos nobres colegas. É certo que a inamovibilidade dos membros do Ministério Público, embora consagrada em termos substancialmente equiparáveis, não se identifica à dos juízes, precisamente porque - ao contrário do que sucede em relação a magistratura - no Ministério Público, a garantia há de conciliar-se com os princípios da unidade e da indivisibilidade, impostos no mesmo contexto da Lei Fundamental.

A meu ver, não se cuidará, assim, de repelir os institutos deles decorrentes, da avocação e da substituição, mas, sim, de cercar o exercício desses poderes de cautelas contra o uso arbitrário ou casuísticos de suas virtualidades.

Assim não me parece que o sistema constitucional constitua óbice à continuidade e ao aprofundamento da experiência de grupos especiais de promotores: na medida em que constituídos regularmente, o plexo de atribuições de tais equipes, ipso facto, estará subtraído da esfera protegida das atribuições legais ordinárias do agente que tenha a sua demarcação na competência do juízo perante o qual sirva. Estou, data venia, em que a opinião contrária é fruto da falsa idéia de que a rotina ronceira de que o ofício de cada órgão do Ministério Público deve ter atribuições coextensivas ao de um órgão judiciário. Nada, entretanto, o impõe e as conveniências da administração dos fins institucionais do Ministério Público frenquentemente o desaconselham.

Outro ponto bastante discutido em torno do tema é sobre a existência de alguns dispositivos constitucionais que se chocam com a existência do princípio do promotor natural.

O Promotor de Justiça Benon Linhares Neto, titular da 26a Promotoria de Justiça Cível de Fortaleza, em artigo intitulado “ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO PROMOTOR NATURAL”, elenca três dispositivos constitucionais que, ao seu vê, não estão em plena sintonia com a discutida garantia constitucional do cidadão. Veremos uma a uma, dando em seguida nossa posição.

O primeiro seria a forma de nomeação do Procurador-Geral da República (art. 128, II, § 1o, da CF), nomeado pelo Presidente da República, dentre integrantes da carreira. Igualmente a nomeação do Procurador Geral de Justiça dos Estados, Distrito Federal e Territórios (art. 128, II, § 3°, da CF), que formam uma lisa tríplice, após uma eleição direta por toda a classe, cabendo ao Chefe do Poder Executivo local, a escolha de qualquer dos integrantes da lista tríplice. Para o dileto colega, se a referida forma de escolha do Chefe do Ministério não caracteriza um obstáculo para o desempenho do cargo, afigura-se, no entanto, como um inibidor a uma atuação independente e desvinculada do Poder Executivo e de seus interesses políticos menores, além de configurar ingerência desse Poder no Ministério Público, e, assim, portanto, contrário e incompatível com a tese do promotor natural.

Inicialmente quero concordar com o ilustre agente ministerial quanto a equivocada forma adotada pelo legislador constituinte para escolha do Chefe do Ministério Público, em todos os seus ramos. O melhor seria, conforme propõe o colega Benon Linhares, a elaboração da lista tríplice por toda a classe, sendo que o mais votado seria nomeado e empossado pelo Colendo Colégio de Procuradores de Justiça dos Estados, Distrito Federal e Territórios, bem como da União, evitando-se, assim, quaisquer ingerência externa sobre o Ministério Público, garantindo-se, em toda a sua amplitude e sem sofismas, a verdadeira independência.

No entanto, data venia, não vislumbramos no presente dispositivo qualquer ofensa ao princípio do promotor natural, a uma, porque referida escolha se dar tão somente sobre o Chefe da Instituição, e sua “comprometida independência” não comprometeria e nem compromete a independência funcional de todos os demais membros da instituição. A duas, porque o princípio do promotor natural não emana tão somente da independência funcional, que estaria comprometida segundo o colega, senão também da inamovibilidade, do devido processo legal (art. 5o, LIII, da CF) e do direito do cidadão de ser processado pela autoridade competente (art. 5o, LV, da CF), como estudado anteriormente. Por fim, se a forma de escolha do Chefe do Ministério Público pelo Chefe do Poder Executivo desfigurasse ou comprometesse o postulado do promotor natural, o que diríamos do princípio do juiz natural, já que todos os integrantes dos Tribunais Superiores do país são escolhidos exatamente pelo Presidente da República?

Outro dispositivo elencado pelo citado colega que vai de encontro ao princípio estudado, diz respeito a vedação de exercício de atividade político-partidária, ressalvado, porém as exceções previstas em lei sem, entretanto, enumerá-las (art. 128, II, letra “e”, da CF). Com isso, permitiu-se que o membro do Parquet, na realidade, por força da norma infraconstitucional, possa filiar-se a partido político e concorrer a cargo eletivo. Segundo Benon Linhares:

"se eleito, quando voltar ao exercício do cargo no Ministério Público, fica evidente que não mais será independente no desempenho de suas funções, em face dos compromissos políticos eleitoreiros assumidos anteriormente, comprometendo assim a sua atuação ministerial e o princípio do promotor natural. Mesmo que não seja eleito, as consequências são exatamente as mesmas da primeira hipótese. Bom mesmo seria se nunca mais tivesse que reassumir suas funções anteriores a eleição ou exercício do cargo político”.1

Aqui também, em dissonância com o zeloso colega, entendemos que aludido permissivo constitucional em nada afronta ao princípio do promotor natural. Ora, como dito acima, o fundamento básico do princípio não cingi-se tão somente ao princípio da independência funcional. Além do mais, não devemos ter como premissa inderrogável o fato de que todo aquele que exerceu cargo político ou concorreu a uma eleição perde a sua independência, viola seus valores éticos e morais, estando ligado para sempre a um vínculo "maldito".

Por fim, enumera o nobre colega um terceiro dispositivo que, em seu entender, encontra-se em desacordo com o princípio do promotor natural. Trata-se do exercício da advocacia que, apesar de vedado para os membros do Ministério Público (art. 128, II, letra, “b", da CF), foi excetuado o seu desempenho para aqueles membros do Parquet que optassem pelo regime anterior no que diz respeito às garantias e vantagens, desde que admitidos antes da promulgação da Constituição, sendo observado quanto as vedações (exercício da advocacia), a situação jurídica na data da admissão (art. 29, § 3o, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).

Benon Linhares assegura, que:

"com esta ressalva, a Constituição permitiu que alguns Promotores e Procuradores de Justiça, cumulativamente com o desempenho de suas funções institucionais, pudessem ainda advogar, o que, sem sobra de dúvidas, gera um conflito de interesses inconciliáveis, que ameaça fazer ruir o princípio da independência funcional, no momento em que o advogado (promotor) tenta, de todas as formas, bem desempenhar os poderes que lhe foram outorgados por seus clientes, que, não raras vezes, têm aspirações visceralmente contrárias ao interesse público. Evidente, mais uma vez, o comprometimento da independência funcional”2

Que compromete a independência funcional até que concordamos, muito embora saibamos que os agentes do Ministério Público contemplados com referido dispositivo, evidentemente não atuarão concomitantemente como Promotor e como advogado no mesmo processo, quiçá, tão pouco na mesma unidade jurisdicional. Concordamos, ainda, que o exercício da advocacia não se coaduna com o exercício ministerial. No entanto, forçoso é discordar mais uma vez do competente Promotor no que diz respeito ao conflito entre o dispositivo citado e o princípio do promotor natural, ambos podem coexistirem perfeitamente, pelos mesmos motivos elencados no estudo dos dois outros itens, no que couber.

Ainda em seu ensaio sobre o princípio do promotor natural, Benon Linhares, analisando a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n° 8.625/93), afirma que esta "traz, em seu bojo, dois dispositivos que considera absolutamente incompatíveis com o princípio do promotor natural, e, portanto, completamente eivados pelo vício da inconstitucionalidade”.
O primeiro seria o art. 10, inciso IX, letra “g", onde mencionado diploma legal, diz que compete ao Procurador-Geral de Justiça, “por ato excepcional e fundamentado, exercer as funções processuais afetas a outro membro da instituição, submetendo sua decisão ao Conselho Superior do Ministério Público”.

No ensaio estudado, Benon Linhares informa que Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, em seu livro O Ministério Público no Processo Civil e Penal - Promotor Natural - Atribuições e Conflito com base na Constituição de 1988, discorda de seu entendimento, pois, para ele (Paulo Cezar), pode ocorrer a quebra do primado constitucional do promotor natural, "desde que os interesses em jogo fossem de superior importância, ou seja, o sacrifício do princípio só pode ocorrer por outro de natureza superior ou, até mesmo, para garantir o próprio princípio”.

Como exemplos desses motivos de superior importância, Paulo Cezar elenca “caso de suspeição não declarada pelo Promotor, atraso no cumprimento dos prazos, falta de empenho ou diligência nos atos que lhe são próprios, inclusive produção de prova, favorecimento a uma das partes, etc.”.

Sustentando seu ponto de vista e rebatendo os argumentos de Paulo Cezar, o Promotor cearense assegura que todas as hipóteses referidas pelo agente ministerial carioca são perfeitamente passíveis de sanções disciplinares, que vão da advertência até a demissão, e a que, na verdade, se deve recorrer em casos que tais, não se justificando, portanto, a quebra de um preceito constitucional, antes de se apurar devidamente em processo administrativo próprio e legal a conduta irregular, imoral ou ilícita do membro do Ministério Público, e mesmo que apuradas, se deve adotar as providências previstas em lei e não violar um primado constitucional, in casu, o princípio do promotor natural, garantia constitucional da sociedade e do cidadão.

Mais uma vez pedimos venia para discordar do nobre conterrâneo, e nesse particular, ombrear-me com Paulo Cezar.

O princípio do promotor natural não deve ser visto como algo absoluto - aliás não há o absoluto em Direito - e acima de todos os demais preceitos. Referido postulado deve ser analisado em consonância com os demais que regem o Ministério Público, principalmente o da unidade e o da indivisibilidade. É bem verdade que se houver conduta funcional reprovável por parte do agente da instituição que se instaure o procedimento devido. No entanto “morrer” abraçado a um princípio em detrimento do nome da instituição não cremos ser a melhor política. Antes do interesse ou conveniência do membro do Ministério Público, existe o da instituição.

Além do mais, lembre-se, que se, por força do dispositivo questionado, um membro do Ministério Público for afastado de suas funções, já há previsão legal de quem assumirá estas, no caso o Procurador Geral de Justiça, permanecendo incólume o princípio do promotor natural, que consiste nada mais na existência de um órgão do Ministério Público anteriormente previsto pela lei para oficiar nos casos que sejam afetos à instituição.

Para sustentar a inconstitucionalidade do dispositivo o ilustrado colega se socorre da lição do não menos ilustre, e tantas vezes citado, Paulo Cezar, que leciona: “Caso a interpretação deste dispositivo seja no sentido de efetivo afastamento e não de atribuição concorrente, estaremos diante de novo instituto administrativo, o da renúncia da atribuição".(grifo nosso)

Entende mencionado autor, que a atribuição ministerial é irrenunciável, “pelo simples fato de não ser um direito unicamente do Promotor e ainda que fosse seria certamente indisponível”. E arremata o respeitado jurista deduzindo que “O Promotor Titular não pode, evidentemente, ser afastado, inclusive por renúncia”.

Concluindo seu posicionamento sobre o mencionado preceptivo legal, Benon Linhares pondera que “antes do interesse ou conveniência do membro do Ministério Público, existe a garantia constitucional do cidadão e da sociedade, consubstanciada justamente no princípio do Promotor natural.

A propósito do art. 24 da Lei n° 8.625/93, ora estudado, só o entendemos como caso de atribuição concorrente, nunca como efetivo afastamento. Este, e somente este, é o entendimento e a interpretação que o operador do direito deve dar. Assim, não o entendemos como inconstitucional, apenas deve ser interpretado - repita-se - como atribuição concorrente, à luz do princípio do promotor natural e dos demais postulados inerentes à instituição ministerial.

Conclusâo


Como se pode extrair da análise do presente trabalho, a Carta Política de 1988 consagrou o princípio constitucional do promotor natural, não só como garantia ao pleno exercício dos membros do Ministério Público, mas antes como garantia constitucional do cidadão e da sociedade.

Sustentamos que o princípio do promotor natural tem sua base constitucional ancorada em quatro fundamentos básicos: o devido processo legal (art. 5o, Llll, da CF), o direito do cidadão de ser processado pela autoridade competente (art. 5o, LIV), a independência funcional (art. 127, § 1o) e a inamovibilidade (art. 128, § 5o, I, “a”).

O postulado do promotor natural é mais um instrumento que garante ao Promotor de Justiça uma atuação livre e independente, não se sujeitando a pressões ou influências de quaisquer espécies, partam de onde partirem, velando, única e exclusivamente pelo disposto no art. 127 da Lex Fundamentalis, ou seja, “patrocinando a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
O princípio do promotor natural tem a finalidade de evitar a atuação dirigida do Parquet, o agir encomendado, seja para beneficiar, seja para prejudicar alguém. Num e noutro caso há ruptura da imparcialidade da atuação ministerial, a comprometer a seriedade da jurisdição (buscada oportunamente), que não pode ser escudo de perseguição pessoal nem de beneplácito das autoridades. O cidadão tem o direito ao processamento imparcial integral, desde a condução das investigações até a definitiva tutela jurisdicional.

Assim é que fica vedado aos Procuradores Gerais fazer designações ofensivas à imparcialidade da persecutio ou que tenham por objetivo afastar do feito o membro legalmente investido das atribuições de nele atuar. Sendo princípio da instituição ministerial a independência funcional, o convencimento do membro do Parquet não pode ser cerceado por autoridade que só administrativamente lhe é superior. Não pode haver, neste mesmo tirocínio, ingerências ou determinações do Procurador Geral sobre o agir ou não-agir do membro da instituição nos feitos da alçada deste; não pode haver determinação de abertura de procedimento investigatório nem de trancamento de algum já instaurado.

Eventualmente, porém - pois não há o absoluto em Direito - podem ocorrer designações de membros do Ministério Público pela autoridade competente. Mas tais designações só são permitidas quando escudadas em critério legal prévio, genérico e imparcial. Urge a existência de norma abstrata que, anteriormente ao fato concreto, discipline procedimento das designações, numa atmosfera de razoabilidade e proporcionalidade.

A nova disciplina constitucional do Ministério Público redefiniu o sentido e o caráter de sua ação institucional, para que nele se passe, agora, a vislumbrar o instrumento de preservação de um ordenamento democrático, dotando-o, por conseguinte, de diversas garantias e instrumentos legais, entre eles o princípio do promotor natural.

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1 LINHARES NETO, Benon. Algumas Considerações Sobre o Princípio constitucional do Promotor Natural. Artigo, 2000, p.07.
2 Idem. p08.
1 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O Ministério Público no Processo Civil e Penal - Promotor Natural - Atribuições e Conflito com base na Constituição de 1988. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.52-53.
2 Idem. p.54
3 LYRA, Roberto. Como Julgar, Como Defender, Como Acusar. São Paulo: Konfino, 1975, p. 121.
4 MARQUES, José Frederico. A Reforma do Poder Judiciário. Vol. 1. São Paulo: Ed. Saraiva, 1979, p175.
5 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O Ministério Público no Processo Civil e Penal - Promotor Natural - Atribuições e Conflito com base na Constituição de 1988. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.65. 
1 MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p79.   
1 MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p97.
2 Idem, p.98.
3 LIMA, Francisco Gérson Marques de. Fundamentos Constitucionais do Processo. 1 .ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.183.   
1 Estudos e Pareceres de Direito Público. Vol. VII/332, 335 e 336., 1983, RT.
1 ROCHA, José Albuquerque. Teoria Geral do Processo. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 261.

2 MEIRELLES, Hely Lopes. Estudo e Pareceres de Direito Público. Vol. VII. São Paulo: RT, 1983, p125.   
1 RTJ 1471129-30.   
1 STF - Agravo de instrumento n° 168.964-11040 - Rei. Néri da Silveira, Diário da Justiça, Seção 1, - 29.05.96, P. 16.352.   
13 TORNAGHI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Civil. V.1. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1976, p. 297.
1 - ESPINDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais:. São Paulo: Revista dos * Tribunais, 1999, p. 57.
2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Editora Almedina, 1998, p. 1.034.
3 Idem
4 Idem
5 Idem. P. 1.035
6 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra.: Almedina, 1998, p. 1.034.
7 Idem. p. 1.023.
8 GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, P. 19.
9 Idem.
10 Idem.
11 Idem.

12 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Editora Almedina, 1998, p. 1.035.

Para citar este documento (ABNT/NBR 6023: 2002):

Oliveira, Marcos William Leite de: O Ministério Público e o Princípio do promotor naturala. Práxis Jurídica, Ano V, N.º 01, 18.12.2018 (ISSN 2359-3059). Disponível em: <https://praxis-juridica.blogspot.com/2018/12/o-ministerio-publico-e-o-principio-do.html>. Acesso em:   
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